Carta aberta ao Ministro da Educação

As organizações indígenas e indigenistas frente à atual política pública de educação escolar indígena no Brasil”

Exmo. Sr. Prof. Dr. Fernando Haddad

Ministro de Estado da Educação

Ministério da Educação

A Rede de Cooperação Alternativa (RCA – Brasil) promoveu, entre os dias 18 a 20 de novembro de 2008, reunião intitulada “As Organizações Indígenas e Indigenistas frente à atual Política Pública de Educação Escolar Indígena no Brasil”, com o objetivo de refletir sobre a política nacional de educação indígena no país. Esta carta pública resulta dessa reunião e tem a intenção de chamar atenção para as dificuldades e problemas que têm marcado a condução recente da política nacional de educação ofertada aos povos indígenas no nosso país, especialmente no que se refere à parceria entre o Governo Federal e a sociedade civil.

Desde 1991, quando o Ministério da Educação recebeu a incumbência de coordenar as ações de educação escolar indígena no país, por força do Decreto Presidencial 26/91, as organizações da sociedade civil têm sido parceiras do Ministério, não só integrando diferentes instâncias de interlocução e assessoramento criadas, como colaborando na formulação de diretrizes, programas e referenciais, que tem marcado a atuação federal nessa área. As organizações indígenas e indigenistas têm, também, participado dos programas governamentais, implementando ações locais e regionais na formação diferenciada de professores indígenas, na elaboração de materiais didático-pedagógicos específicos em português e nas línguas indígenas e no assessoramento e criação de currículos e propostas político-pedagógicas para as escolas indígenas. Parcerias entre essas organizações e o governo federal têm permitido que vários sistemas de ensino estaduais acolham políticas diferenciadas, que respeitem os interesses e direitos indígenas.

Todos os documentos públicos editados, pelo Ministério da Educação nos últimos anos, sejam eles referenciais ou diretrizes, apontam para a importância da ação incisiva e comprometida de organizações da sociedade civil, indígenas e indigenistas, na implantação do modelo de uma educação diferenciada aos povos indígenas, em consonância com o que estabelece a atual Constituição do país e as leis que a seguiram. Foi a atuação dessas organizações, gerando novas práticas e idéias, que permitiu ao Estado brasileiro formular e procurar implementar um novo modelo de educação, não mais pautado pelas idéias da integração e da assimilação dos índios à comunhão nacional, mas ancorado na perspectiva do respeito e da proteção das culturas e línguas próprias destes povos. Nos últimos anos, a participação e a atuação dessas organizações na formulação, execução e avaliação das políticas públicas de educação escolar indígena garantiu o diferencial da política nacional de educação indígena, frente a insensibilidade que caracteriza a atuação nessa área de alguns dos sistemas de ensino estaduais. O trabalho especializado de organizações não-governamentais indígenas e indigenistas tem sido a principal base de sustentação para que os projetos de escolas diferenciadas se mantenham articulados com os interesses comunitários indígenas e não se descaracterizem no cenário homogeneizador das políticas públicas nacionais.

Todavia, nos últimos anos o MEC vem fechando os espaços institucionais, historicamente conquistados, de interlocução com as organizações não-governamentais, alijando-as das discussões e da implementação da política nacional de educação indígena, assumindo uma posição de que a parceria não está em seu horizonte ideológico e administrativo. No nosso entender, essa posição fechada ao diálogo e à parceria, que sempre marcou a execução das políticas de educação indígena no país, contraria o compromisso do próprio Presidente da República que, desde seu primeiro mandato, afirma acreditar na ação conjunta entre o Estado e a sociedade, condição para a conquista e ampliação da cidadania e democracia em nosso país.

Ainda assim a Rede de Cooperação Alternativa Brasil (RCA), pautada pelo princípio da democracia, produziu e encaminhou, nos últimos anos, vários documentos ao MEC, no sentido de reabrir o diálogo com as organizações e buscar mecanismos para que continuássemos colaborando com a implementação da política de educação indígena no Brasil. No entanto, mesmo com respostas formais, o MEC não apresentou nenhuma ação concreta de parceria. Ao contrário, equivocadamente, priorizou estabelecer diálogo restrito com as Secretarias Estaduais de Educação, excluindo as organizações indígenas e indigenistas, não só da formulação de programas, como de sua execução. Financiamentos para programas de formação de professores indígenas e para publicação de materiais didáticos foram suspensos, comprometendo processos educativos e formativos há vários anos em curso. Programas nacionais como o PAR-Indígena foram formulados, sem consulta e participação das organizações e comunidades indígenas, em desrespeito a Convenção 169, que integra o ordenamento jurídico do país, e prevê a participação indígena na formulação e implementação de medidas administrativas que os afetem.

A realização desta reunião temática, que reuniu parte das organizações indígenas e indigenistas que atuam no campo da educação indígena, tem o sentido de mais uma vez procurar sensibilizar o Ministério da Educação, e particularmente sua Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, para a importância do diálogo e da parceria com a sociedade civil na formulação e na implementação das políticas públicas, ainda mais nesse momento em que o MEC, finalmente, encampa o compromisso de campanha do Presidente Lula de realizar a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena. Por acreditar na qualidade do trabalho que desenvolvemos, no compromisso com o respeito aos direitos indígenas, e na importância de nossa atuação nas ações públicas de educação escolar indígena é que, mais uma vez, externamos nossa insatisfação com a forma pela qual o MEC vem tratando o trabalho desenvolvido pelas organizações indígenas e indigenistas no campo da educação escolar indígena.

Ao restringir o financiamento das ações de educação escolar indígena somente aos sistemas de ensino estaduais, o Ministério da Educação impôs uma ruptura em vários processos de formação de professores indígenas e de melhoria das condições de ensino em várias comunidades indígenas do país, que vinham sendo conduzidos por organizações indígenas e indigenistas. Ao empurrar essas organizações para que buscassem financiamento de suas ações junto aos sistemas de ensino, o MEC abriu mão do papel de coordenador nacional das ações de educação indígena, ignorando processos conflituosos em curso, e nos quais o MEC vinha atuando como mediador. Esta posição focada na responsabilização de apenas um ator entre aqueles que historicamente vinham construindo práticas de educação diferenciada no país tem se mostrado equivocada.

Passados mais de um ano do processo de implantação do PAR-Indígena e dos ínfimos resultados até agora aferidos, acreditamos que é o momento do MEC rever sua postura de alijamento das organizações da sociedade civil, indígenas e indigenistas, de sua política de financiamento e retome o apoio a processos que estavam em curso, avaliados positivamente tanto pelo próprio MEC como pelas comunidades atendidas, e que foram suspensos pela falta de apoio político e financeiro do Ministério.

A interrupção de projetos de formação de professores indígenas comprometeu processos formativos importantes, causando prejuízo direto aos professores indígenas e seus alunos, uma vez que tais processos não tiveram continuidade ou foram assumidos pelos Estados a partir da implantação do PAR-Indígena. Da mesma forma, a não continuidade da linha de financiamento para a publicação de materiais didáticos diferenciados para as escolas indígenas impede que vários materiais finalizados ou em fase de finalização, elaborados por professores indígenas, sejam publicados em benefício das escolas indígenas.

Analisando a situação da educação indígena em nove diferentes estados do Brasil, que têm alta relevância de territórios e populações indígenas, onde atuam as instituições signatárias desta carta – Acre, Amazonas, Amapá, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Pernambuco-, evidencia-se que a decisão da SECAD/MEC, de não mais apoiar diretamente o trabalho das organizações indígenas e indigenistas no país interferiu na correlação de forças locais, desestabilizando processos e parcerias existentes, sem que com isso se ganhasse em institucionalização ou maior qualidade dos processos educativos. Ao contrário, persistem situações sistemáticas de desrespeito ao direito a uma educação diferenciada sem que as atuais ações implementadas pela SECAD resultem em melhoria das condições de ensino nas aldeias do país.

É por este motivo, que lamentamos que o PAR-Indígena tenha sido elaborado sem qualquer forma de consulta e participação das comunidades e organizações indígenas, principalmente as de representação de professores indígenas; sem avaliar e tomar em consideração os trabalhos até então realizados e em andamento em cada Estado e sem implantar instrumentos de monitoramente da eficácia dos recursos públicos disponibilizados. Lamentamos, também, que a CAPEMA tenha deixado de existir, eliminando o que considerávamos uma importante instância de avaliação da qualidade do material didático elaborado para uso nas escolas indígenas. Por fim, lamentamos, mais uma vez, o abandono, por parte do MEC, do princípio da participação, da parceria e do trabalho em conjunto entre Estado e sociedade civil, que respondeu em grande medida pelo sucesso até então alcançado por esta política pública.

Até este momento, avaliamos que as organizações indígenas e indigenistas não foram eficazes em demonstrar ao MEC os equívocos da política recente implementada pela SECAD que, não levando em conta a configuração do campo da educação indígena no Brasil, arbitrariamente decidiu pela responsabilização exclusiva dos sistemas de ensino na condução dos processos de formação de professores indígenas, excluindo atores que sempre atuaram e vão continuar atuando na educação indígena. E é por este motivo que tais organizações elaboram a presente carta pública ao Sr. Ministro, na esperança de que sejam re-abertos canais eficazes de interlocução, diálogo e trabalho conjunto entre Governo Federal e organizações da sociedade civil, indígenas e indigenistas, atuantes no campo da educação indígena, e propõem como pauta para discussão:

– criação de espaços institucionalizados de interlocução e diálogo entre o MEC e as entidades da sociedade civil, indígenas e indigenistas;

– avaliação visando o prosseguimento ao financiamento das ações e programas de educação indígena que estas organizações conduziam;

– reativação da CAPEMA para avaliação da qualidade dos materiais didáticos diferenciados elaborados com recursos públicos dentro do PAR-Indígena;

– discussão ampla e democrática de programas governamentais que afetam diretamente as comunidades indígenas;

– cumprimento efetivo da obrigação legal de uma educação diferenciada, com qualidade, para as comunidades indígenas.

Brasília, 30 de novembro de 2008.

Associação dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins – Vyty Cate

Associação Terra Indígena Xingu- ATIX

Centro de Cultura Luiz Freire – CCLF

Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas – COPIAM

Comissão Pró-Índio do Acre – CPI/Acre

Comissão Pró-Yanomami – CCPY

Instituto de Formação e Pesquisa em Educação Indígena – Iepé

Instituto Socioambiental – ISA

Organização dos Professores Indígenas de Mato Grosso – OPRIMT

Organização dos Professores Indígenas de Roraima – OPIR

Organização dos professores Indígenas do Acre – OPIAC

Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngüe – OGPTB

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A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.