Sociedade científica se manifesta contra o veto da presidência ao projeto que aperfeiçoa a LDB: a nota da Associação Brasileira de Antropologia – ABA

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Nota da Associação Brasileira de Antropologia sobre o veto presidencial ao Projeto de Lei n o . 5.954 de 2013, que “altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de diretrizes e bases da educação nacional), para dispor sobre a avaliação na educação indígena”

Sobre o veto presidencial ao Projeto de Lei n o . 5.954 de 2013, que “altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de diretrizes e bases da educação nacional), para dispor sobre a avaliação na educação indígena”, a Associação Brasileira de Antropologia, vem externar sua discordância quanto ao veto presidencial ao projeto supra referido. A Constituição Federal de 1988 consolidou significativos avanços em relação aos povos indígenas e, particularmente, às práticas de Educação ao afirmar em seu artigo 231 que diz que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, ressaltando que não há, aqui, limites para o reconhecimento (utilização da língua, tradições, etc.); assim como em seu artigo 210, §2º “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.
O ordenamento infraconstitucional segue a mesma direção: a LDB (1996), o Referencial Curricular Nacional para a Educação Escolar Indígena (1998), o Parecer n o . 14 e a Resolução n o . 03 (1999), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena (2013), e o Plano Nacional de Educação (2014), consolidam as práticas e fundamentos de uma Educação Escolar Indígena específica e diferenciada, bilíngue, comunitária e intercultural. Devemos destacar que no Brasil existem mais de 200 línguas ativas, faladas como primeira língua em diversas comunidades indígenas; sabemos que a proposta das escolas indígenas, em qualquer nível, não é o monolinguísmo, mas sim, o bilinguismo e a interculturalidade. Nesse particular, devemos frisar que a relação ensino – aprendizagem está diretamente relacionada às lógicas estruturais cognitivas e epistemológicas que os sistemas linguísticos próprios elaboram/produzem. O respeito às línguas indígenas não caracteriza o impedimento da oferta de outras línguas estrangeiras, bem como o desejável reforço do ensino do português, como segunda língua (quando for o caso, pois devemos destacar que muitos indígenas têm o português como primeira língua), principalmente no tocante à metodologia e às práticas próprias de redação científica. A maioria dos indígenas que procuram a formação profissional e o ensino superior o faz com a intenção de servir às suas próprias comunidades, uma busca pautada pelo desejo de reverter os efeitos sociais ainda presentes do processo histórico da colonização que subalterniza e inferioriza as culturas, saberes e línguas indígenas e impõe um conhecimento único como verdadeiro e cientifico, ainda que este tenha se construído e ainda se construa a partir das descobertas de outros modos de conhecimento. Associação Brasileira de Antropologia, Caixa Postal 04491, Brasília-DF, CEP: 70904-970 Tel/Fax: (61) 3307-3754 – E-mail: [email protected] – Site: www.portal.abant.org.br Julgamos que todos os esforços do próprio governo federal, como as diversas formas de ação afirmativa, os programas de formação diferenciada, bilíngue e intercultural que tem sido oferecido pelo MEC para formação de professores e efetivação das escolas indígenas diferenciadas no Brasil (PROLIND e Saberes Indígenas na Escola), têm reconhecido a diversidade étnica. Nesse sentido o projeto de Lei n o . 5954 de 2013 (n o . 186 de 2008 no Senado Federal), aprovado pelo Congresso Nacional está em consonância com essa postura, significando um sinal importante para avanços futuros. A proposta apresentada pelo Senador Cristovam Buarque em 2008 propõe alterar o artigo 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Este ganharia um novo parágrafo, o § 4º, que estabelece que os processos de avaliação educacional respeitarão as particularidades culturais das comunidades indígenas. Afinal, não tem sentido as crianças indígenas serem alfabetizadas em suas línguas maternas e serem obrigadas a fazer a “Provinha Brasil”, em língua portuguesa, única para todo o país, desrespeitando exatamente as particularidades culturais destes povos, suas línguas e processos próprios de aprendizagem. Segundo o Senador Cristovam Buarque em sua fundamentação, “para que a instituição escolar respeite a diversidade cultural dessas comunidades, não se sustenta a tese de que os estabelecimentos de ensino e os estudantes indígenas devam ser submetidos aos mesmos processos de avaliação das demais escolas e alunos. É preciso criar procedimentos avaliativos que considerem as particularidades de cada comunidade indígena. Fatores como a relação entre as línguas maternas e a portuguesa e a importância da oralidade de cada cultura devem ser respeitados e levar à elaboração, pelas autoridades competentes, de avaliações específicas”. Salientamos, ainda, que durante o período de 7 anos em que este Projeto de Lei tramitou no Congresso, ao ser analisado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, a Senadora Fátima Cleide, acatando o projeto inicial, sugeriu que ele fosse complementado, incluindo-se uma alteração no artigo 32 da LDB (1996): que “não somente no ensino fundamental, mas na Educação Básica se assegurasse a essas comunidades poderem utilizar suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Tal proposta que vem dar mais coerência a uma educação diferenciada, afinal adequa-se, dessa forma, à realidade de algumas escolas indígenas do país, em que a língua indígena tem sim sido usada como língua de instrução para além do ensino fundamental; mudança que foi acolhida pelos/as demais senadores/as. O projeto seguiu, então, para a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), onde foi relator o Senador Valdir Raupp. Ao analisar o projeto, julgou por bem expandir a mudança no artigo 32, que passou a “garantir o uso das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem também à educação profissional e ao ensino superior”. Contra todos estes argumentos, o veto presidencial contrapõe a seguinte justificativa: “Apesar do mérito da proposta, o dispositivo incluiria, por um lado, obrigação demasiadamente ampla e de difícil implementação por conta da grande variedade de comunidades e línguas indígenas no Brasil. Por outro lado, a obrigação de se ministrar o ensino profissionalizante e superior apenas na língua portuguesa inviabilizaria a oferta de cursos em língua estrangeira, importante para a inserção do País no ambiente internacional. Por fim, a aplicação de avaliação de larga escala poderia ser prejudicada caso se tornasse obrigatória a inclusão de todas as particularidades das inúmeras comunidades indígenas do território nacional”. Associação Brasileira de Antropologia, Caixa Postal 04491, Brasília-DF, CEP: 70904-970 Tel/Fax: (61) 3307-3754 – E-mail: [email protected] – Site: www.portal.abant.org.br Mais uma vez, a lógica da inserção das políticas dirigidas aos indígenas e a defesa da diversidade étnico-cultural é desqualificada em prol de políticas de cunho universalizante e homogeneizante, em contraposição à diversidade linguística e cultural dos povos indígenas, reconhecida na Constituição Federal (1988). Tal postura desconhece o que acontece Brasil afora, fomentado pelo próprio governo federal, tratando-se estas ações governamentais de resposta a legítimas aos ditames constitucionais, e às demandas dos próprios povos indígenas por acesso ao ensino médio e superior. Seria o caso de indagarmos, ainda, se uma avaliação diferenciada significaria efetivamente algo impraticável e um prejuízo a uma avaliação de larga escala, em especial se consideramos que, em termos numéricos, em um universo de mais de 38 milhões de estudantes no país, deixar de fora os poucos mais de 250 mil alunos indígenas, ou não considerar as 3 mil escolas indígenas num universo de quase 200 mil escolas, que não chegam nem a 0,5%, e reconhecer que se validamos seus processos próprios de aprendizagem, na política de educação escolar indígena, devemos também validar processos próprios de avaliação. Assim, entendemos que os argumentos utilizados para justificar o veto presidencial carecem do mínimo de fundamento legal, é mais um desrespeito aos povos indígenas no Brasil, e às práticas de educação escolar indígenas em consolidação pelas próprias ações federais, demonstrando no mínimo desconhecimento do que o próprio governo faz em respeito às demandas expressas pelos povos indígenas em inúmeros fóruns e numa conferência nacional de educação escolar indígena.

Brasília, 15 de janeiro de 2016.

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