O equívoco de um veto presidencial

O ano começa mal para os povos indígenas. Ainda mais para aqueles que se entusiasmaram com as medidas anunciadas pela Presidente Dilma no encerramento da I Conferência Nacional de Política Indigenista.

Em 29 de dezembro, a Casa Civil da Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a mensagem n. 600/2015 vetando integralmente o Projeto de Lei 5.954/2013.

Esse projeto teve origem no Senado Federal, por iniciativa do Senador Cristovam Buarque, que propôs alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para que as avaliações educacionais respeitassem as particularidades das comunidades indígenas. Esse aperfeiçoamento da LDB, não só é oportuno como necessário: afinal de contas, se as escolas indígenas praticam uma educação escolar diferenciada, com o uso das línguas maternas indígenas e conteúdos culturais correspondentes às tradições indígenas, não podem ser avaliadas pelos instrumentos de avaliação nacional.

Bras’lia - DF, 08/02/2011. Presidenta Dilma Rousseff durante grava‹o no Pal‡cio da Alvorada. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.
Bras’lia – DF, 08/02/2011. Presidenta Dilma Rousseff durante grava‹o no Pal‡cio da Alvorada. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.

No Senado Federal, o projeto (de n.186/08) recebeu duas emendas que expandiram a possibilidade do uso da língua materna na escola indígena, não só na educação fundamental (como está hoje na LDB) mas para toda a educação básica, ensino profissionalizante e ensino superior. Novamente, o acréscimo feito pelos Senadores é oportuno e necessário, visto que com a expansão dos níveis de ensino nas escolas indígenas, o uso das línguas maternas, como direito linguístico, deve continuar sendo garantido.

Este projeto foi aprovado no Senado Federal com pareceres favoráveis dos relatores Senadora Fátima Celeide, Valdir Raupp e Paulo Paim, nas Comissões de Direitos e Humanos e Legislação Participativa e de Educação, Cultura e Esporte. Em julho de 2013, o projeto foi enviado para apreciação da Câmara dos Deputados, tendo sido analisado nas comissões de Direitos Humanos e Minorias; Educação e Constituição e Justiça e da Cidadania, onde recebeu pareceres favoráveis dos relatores Deputados Roberto de Lucena, Jean Wyllys, Maria do Rosário e Pedro Cunha Lima, sendo aprovado sem nenhuma mudança.

Aprovado após 7 anos de tramitação o projeto em pauta seguiu para aprovação da Presidente da República. Ao recebê-lo, a Casa Civil, ouvindo o MEC e o MPOG, considerou que o projeto contrariava o interesse público e, vetando-o, devolveu o projeto de lei ao Congresso Nacional, com a seguinte argumentação:

 “Apesar do mérito da proposta, o dispositivo incluiria, por um lado, obrigação demasiadamente ampla e de difícil implementação por conta da grande variedade de comunidades e línguas indígenas no Brasil. Por outro lado, a obrigação de se ministrar o ensino profissionalizante e superior apenas na língua portuguesa inviabilizaria a oferta de cursos em língua estrangeira, importante para a inserção do País no ambiente internacional. Por fim, a aplicação de avaliação de larga escala poderia ser prejudicada caso se tornasse obrigatória a inclusão de todas as particularidades das inúmeras comunidades indígenas do território nacional. Essas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional”.

Os argumentos deste veto são assustadores, para dizer o mínimo. Em resumo diz que não é possível cumprir a Constituição respeitando e valorizando a diversidade de povos e línguas indígenas no Brasil. Ignora que processos específicos de avaliação já têm sido utilizados, bem como desconhece que línguas indígenas estão presentes em escolas de ensino médio e em cursos de licenciatura intercultural em várias universidades brasileiras.

Este projeto de lei não cria nada de novo nem atenta contra o interesse público: apenas insere no corpo da lei iniciativas bem sucedidas já em curso em alguns lugares do país, e que deveriam ser expandidas para que de fato se avance na proposta de uma educação indígena diferenciada, de qualidade e que valorize as línguas indígenas.

Em meros 20 dias a Casa Civil analisou, concluiu e jogou às favas um projeto de alteração de lei favorável aos índios, com argumentos equivocados, demonstrando desconhecimento e descaso com a educação que se oferece nas comunidades indígenas. Passou recibo de incompetência no trato da diversidade cultural e étnica que caracteriza nosso país.

Voltando a I Conferência Nacional de Política Indigenista, vale lembrar que o conjunto mais expressivo de propostas trazidas ao debate dizia respeito justamente a precariedade do ensino praticado nas aldeias. O governo perdeu a oportunidade de mostrar com atos concretos que suas boas intenções não se resumem ao plano discursivo.

Cabe agora ao Congresso Nacional reparar esse erro, rejeitando o veto presidencial.

2016 não pode seguir na toada de 2015.

Luís Donisete Benzi Grupioni
Representante da Sociedade Civil na Comissão Nacional de
Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação
Coordenador do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
Secretário Executivo da Rede de Cooperação Amazônica

(Publicado originalmente pelo Instituto Socioambiental – ISA)

 

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