O veto vem para dar o golpe fatal a uma educação já limitada e frágil

image1Confira a entrevista que a antropóloga e linguista Bruna Franchetto, professora do Museu Nacional da UFRJ, concedeu a Tatiane Klein, do Instituto Socioambiental (ISA), sobre o veto da Presidente Dilma Rouseff ao projeto de lei que traria inovações à Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) no tocante a educação escolar indígena.
2015 RCA IV mod Mauricio Yekuana (23)Qual sua opinião sobre o veto da presidência da República ao PL que inseria na LDB a possibilidade de critérios diferenciados de avaliação para escolas indígenas e ampliava o uso de línguas indígenas para os ensinos médio, profissionalizante e superior?

Um desastre, um atraso vergonhoso, declaração de ignorância e sede colonialista, na contramão do que acontece no mundo.

Você é uma das pioneiras da luta em favor da presença indígena nas universidades, já tendo formado inúmeros linguistas indígenas no Museu Nacional/UFRJ. Na prática, por que é importante garantir em lei que as línguas indígenas possam ser usadas em outros níveis de ensino, para além do ensino básico?

Vamos colocar as coisas no devido lugar, corrigindo: sou apenas um entre os pioneiros da luta em favor da presença indígena nas universidades, sou também uma militante da preservação e revitalização das línguas indígenas e da sua presença real, bem como de seu uso amplo, nas escolas indígenas e não-indígenas. Formei alguns professores e pesquisadores indígenas, no magistério e no ensino superior, inclusive em nível de pós-graduação.
A defesa dos chamados direitos linguísticos de toda e qualquer minoria, sobretudo das populações indígenas, é um requisito fundamental para o seu bem-estar, individual e coletivo, para a sua sobrevivência, a transmissão de saberes milenares, de conhecimentos únicos, artes, poéticas, etc. Cada vez mais, jovens indígenas tem acesso aos níveis de ensino além do básico; para muitos deles o português é a segunda ou terceira ou quarta língua. Os índios são, desde sempre, bilíngues, trilíngues, multlíngues. Sabemos que o monolinguismo é empobrecedor, cognitivamente e culturalmente. E todas as línguas têm o mesmo valor e a mesma natureza. É a ideologia colonizadora e assimiladora, junto com a miopia da retórica nacionalista, que vangloria a lorota “uma nação, uma língua”. As línguas indígenas, todas ameaçadas, enfraquecidas, devem ter seu lugar, sua voz, em todos os níveis de ensino, não somente para garantir os direitos dos já muitos alunos indígenas além do ensino básico, mas também para abrir as cabeças dos alunos não-indígenas de escolas e universidades, cuja formação é sabidamente limitada e medíocre, no Brasil.

Nós sabemos que na prática já há muitas experiências de uso das línguas indígenas nesses outros níveis de ensino – assim como de processos de avaliação escolar próprios –, mas também que são colocados muitos obstáculos a elas por quem executa as políticas da educação escolar indígena localmente. Você poderia citar algum exemplo de sucesso e/ou relatar algum caso emblemático das enfrentadas pelas comunidades indígenas pra fazer valer o direito à uma educação de fato diferenciada?

Não tenho uma avaliação tão otimista. Há poucas experiências bem sucedidas de uso de línguas indígenas tanto no ensino básico como além dele. A mesma coisa pode ser afirmada com relação a implementação de processos próprios de avaliação escolar. As dificuldades não são inerentes à questão. O que existe resiste aos obstáculos colocados pelas instâncias municipais e estaduais (e às vezes federais), que se destacam, em sua maioria, por despreparo e preconceitos (em parte frutos da formação escolar no Brasil). Os cursos de formação de professores indígenas, que proliferam no Brasil, tendem a ignorar a existência das línguas indígenas, muitas vezes faladas como primeira língua por seus acadêmicos, ou as tratam com displicência e profunda ignorância. Devo dizer que vi isso acontecer também com ONGs acima de qualquer suspeita…Bons exemplos? Algumas pesquisas ou projetos dos próprios alunos indígenas de cursos superiores, como Anari Bonfin, linguista pataxó, que escreveu uma bela dissertação de mestrado na UFBA sobre a gênese do Patxohã, uma revitalização de uma língua considerada extinta, por iniciativa dos próprios Pataxó, cuja escola é controlada e conduzida de modo autônomo, e onde a “nova” língua Patxohã tem papel central na socialização escolar das crianças. Há outros jovens indígenas com projetos de monografias, dissertações e teses sobre políticas linguísticas e as falhas do sistema de ensino no que concerne exatamente o reconhecimento das línguas indígenas como iguais a chamada língua nacional. Há outros exemplos de resistência e de defesa da autonomia e auto-determinação, como o dos Tapirapé, em algumas escolas do sistema rionegrino e na Terra Indígena do Xingu. As línguas indígenas estão vivas nas redes sociais, nas quais a presença de vozes indígenas é crescente, domínio ainda democrático e aberto.

Nos últimos anos o próprio governo federal tem levado a cabo várias ações e políticas governamentais, na área da educação ou da valorização cultural, que apoiam a alfabetização em língua indígena, a formação de pesquisadores indígenas, a produção de novos materiais didáticos para as escolas etc. Na sua opinião, por que agora o governo veta um projeto de lei que justamente apoia essa tendência?

Concordo parcialmente com essa avaliação positiva da política governamental. Houve e há boas iniciativas, mas são localizadas, limitadas. Não há nenhuma política linguística explícita, adequada e coerente no Brasil. A produção de materiais didáticos é também limitada, poucos títulos, qualidade discutível. Há sempre exceções, claro, mas são exceções. A formação dos professores é raramente decente. Os que formam os professores indígenas em cursos ‘oficiais’ são muitas vezes despreparados e acabam repassando informações e conceitos no mínimo pobres, desatualizados, preconceituosos. O veto vem para dar o golpe fatal a uma educação já limitada e frágil, bem como para ceifar as boas iniciativas e as boas práticas, colocando o Brasil na contramão do movimento mundial em defesa da diversidade linguística, o que o tornará alvo de chacota internacional. As razões do veto são sórdidas, imagino: resquícios do princípio da segurança nacional, herança da ditadura; reconhecimento da inaptidão e despreparo do governo, do estado, em lidar com suas próprias riquezas. A diversidade é uma riqueza, mas não o é para os lacaios do desenvolvimentismo que não enxerga além da ponta do seu curto nariz e que deu no que deu. Esta riqueza está em cerca de 160 línguas indígenas e suas variedades dialetais, todas acossadas por mídias e um sistema de ensino que as ignoram.

Por fim, no texto do veto, Dilma Rousseff afirma sobre o PL 5944/2013: “Apesar do mérito da proposta, o dispositivo incluiria, por um lado, obrigação demasiadamente ampla e de difícil implementação por conta da grande variedade de comunidades e línguas indígenas no Brasil”. Você pode comentar?

Pois é, é o reconhecimento escandaloso de despreparo, ignorância, indigência mental e cultural. A grande variedade é considerada como um obstáculo e não como uma riqueza a ser defendida, preservada, promovida. Aliás, ela sempre foi vista como um obstáculo. O atual governo, nesta seara, não se diferencia dos que o antecederam nos séculos: é assimilacionista, colonialista, estupidamente desenvolvimentista. E está dando tiro no seu próprio pé.

 

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