Intercâmbio de gestão territorial na TI Tenondé Porã, do povo Mbya Guarani, em São Paulo

No dia 28 de março, uma delegação da Rede de Cooperação Amazônica – RCA visitou a aldeia Kalipety, do povo Mbya Guarani, na Terra Indígena Tenondé Porã, localizada na área rural da capital de São Paulo, para um intercâmbio com foco nos processos de gestão territorial. A RCA tem promovido intercâmbios entre diferentes povos indígenas da Amazônia para propiciar o contato, o aprendizado e a troca de distintas experiências e processos de proteção e sustentabilidade territorial, ambiental, econômica e cultural. Dessa vez, os representantes das organizações da RCA – AMAAIAC, AMIM, Apina, ATIX, CIR, CPI-Acre, FOIRN, Iepé, OGM,  e OPIAC – puderam conhecer um contexto bastante distinto dos seus próprios, tanto no que se refere ao bioma, quanto à extensão e ao processo de legitimação territorial e, ainda, à proximidade em relação ao maior centro urbano da América Latina; aspectos que ensejam desafios e estratégias específicas para a gestão do território.

A TI Tenondé Porã, onde vivem cerca de 1500 Mbya Guarani, situa-se no extremo sul do município de São Paulo, a cerca de 55 quilômetros do centro, e até 2016 tinha apenas 26 hectares demarcados. Com a escassez de espaço e a proximidade com o meio urbano, os habitantes desta área, assim como os habitantes da aldeia Krukutu, localizada a poucos quilômetros de distância da aldeia Tenondé Porã e também com 26 hectares – que mantém em seu cotidiano a língua e as tradições Guarani – foram forçados a abandonar suas práticas de plantio tradicional e incorporar alimentos dos não-indígenas; o que foi reforçado com a presença das escolas (estaduais e municipais) na aldeia. Entendendo que a relação com a terra e a alimentação tradicional são fundamentais para a manutenção do Nhandereko (“nosso jeito de ser” em livre tradução do guarani mbya, que exprime a concepção Mbya de bem viver), os Guarani de Tenondé Porã e Krukutu passaram, em 2013, a reocupar e a reivindicar áreas habitadas por seus antepassados, tanto nos arredores já ocupados por sítios, quanto na área de Mata Atlântica situada na descida da Serra do Mar para o litoral sul de São Paulo, onde existem outras aldeias Guarani, buscando a ampliação de seu território e a retomada de seus modos próprios de plantio e alimentação. Assim foi criada a aldeia Kalipety, por um núcleo de lideranças de Tenondé Porã, antes envolvidos com os processos de educação escolar indígena; onde criaram condições para viver os processos tradicionais de transmissão de saberes no que se refere à produção do alimento Guarani. Numa terra desgastada, antes utilizada por posseiros para o plantio de eucalipto, aos poucos foram mesclando conhecimento tradicional Guarani e técnicas agroecológicas para a recuperação do solo. Em 2016, a TI Tenondé Porã foi ampliada por meio de uma portaria declaratória assinada pelo Ministério da Justiça e passou a ter cerca de 16 mil hectares, que inclui as aldeias Tenondé Porã, Krukutu e Kalipety, e os Guarani puderam, então, se dispersar pelo território, espalhando-se, atualmente, em 8 aldeias. A TI Tenondé Porã faz em seu lado sul fronteira com outras terras indígenas Guarani do litoral de São Paulo, formando o Mosaico Guarani que ocupa parte da Serra do Mar.

A ampliação do território possibilitou que os Guarani concretizassem o desejo de retomar seu modo tradicional de cultivo, aspecto fundamental para a soberania alimentar. Jerá Poty Mirim, liderança da aldeia Kalipety, encabeçou esse movimento de retomada, viajando ao longo de anos para aldeias guarani do sul e sudeste do Brasil e da Argentina em busca de espécies tradicionalmente cultivadas pelo seu povo. Hoje, nas roças da aldeia Kalipety são cultivadas mais de 50 tipos de batata doce, 9 tipos de milho tradicional guarani, mandioca e mate, entre outras espécies, para o consumo da comunidade e a replicação e troca com outras aldeias. A aldeia tornou-se, ainda, uma referência em práticas agroecológicas que articulam saberes do povo guarani e técnicas não-indígenas: hoje, a área da Kalipety foi reflorestada com espécies nativas e o eucalipto reutilizado na construção de casas. “A conquista da terra foi fundamental para o nosso fortalecimento cultural, porque o cultivo dos nossos alimentos tradicionais nos torna cada vez mais autônomos em relação aos alimentos dos não-indígenas”, ressaltou Jerá.

A experiência dos Mbya Guarani de Kalipety suscitou reflexões sobre a relação entre os modos próprios de plantio, a alimentação e o fortalecimento cultural. Os representantes indígenas das distintas regiões e povos da Amazônia lembraram que a soberania alimentar é fundamental para a prevenção de doenças que não afetavam os povos indígenas antes do contato com os brancos, como a diabetes e a hipertensão, entre outras. E destacaram que a valorização cultural resultante da retomada dos cultivos tradicionais pelos Guarani é mais um fato que comprova a inadequação da proposta de monocultura em territórios indígenas. Além de ouvirem as experiências dos Guarani, os participantes do intercâmbio também compartilharam os seus conhecimentos e materiais produzidos sobre gestão territorial, destacando a importância dos processos de formação e atuação dos agentes territoriais e ambientais indígenas, as iniciativas de inserir a alimentação tradicional produzida pelas comunidades na merenda escolar (experiência do Acre), o papel das organizações indígenas, os processos de organização e governança interna que envolvem segurança alimentar a partir dos saberes tradicionais e a elaboração de Planos de Gestão Territorial e Ambiental das terras indígenas (PGTAs).

Durante o intercâmbio, foram realizadas rodas de apresentação e conversa na Opy’i (Casa de Reza Guarani Mbya, que é o local onde ocorrem os processos sagrados, coletivos e de transmissão de saberes mbya guarani), apresentação do coral guarani, visita às roças e troca de sementes, a comunidade ofereceu um almoço tradicional guarani com a batata roxa cultivada por eles.

Estiveram presentes neste intercâmbio as lideranças e a comunidade de Kalipety, representantes de 8 organizações indígenas da RCA, do Iepé, da CPI-Acre, da Secretaria Executiva da RCA e um representante do CTI que atua em parceria com os representantes locais na elaboração do PGTA da TI Tenondé Porã.

“A aldeia Kalipety tem 5 anos, e nesse período conseguimos fortalecer a cultura guarani através do plantio. Antes tínhamos dois tipos de batata doce, hoje já são mais de 50. Até os 28 anos, eu nunca tinha visto milho guarani. Hoje plantamos 9 variedades de milho tradicional. Estamos plantando e relembrando o preparo de alimentos guarani que se comia há 100 anos. Só conseguimos retomar esses conhecimentos porque conquistamos o território. Esses conhecimentos estavam na cabeça das pessoas, mas só com a terra pudemos colocar eles em prática” ( Jera Poty Mirim, liderança da aldeia Kalipety)

 

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A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.