Seminário Final da Formação em Mudanças Climáticas e Incidência Política reúne 40 lideranças indígenas no Recife

Além de trocar experiências de enfrentamento às mudanças climáticas, lideranças da Amazônia, do Cerrado e do Nordeste participaram na Conferência Brasileira de Mudança do Clima

Entre os dias 06 e 08 de novembro ocorreu, em Recife, o Seminário Final de Aperfeiçoamento da Formação em Mudanças Climáticas e Incidência Política, realizado pela Rede de Cooperação Amazônia – RCA em parceria com o Instituto Socioambiental – ISA e apoio da Operação Amazônia Nativa – OPAN. A Formação teve início em 2016, e desde então duas turmas foram formadas, somando 45 lideranças indígenas capacitadas para a incidência política no tema das mudanças climáticas. Além de representantes das 10 organizações indígenas membro da RCA, participaram da Formação lideranças indicadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, que fazem parte do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas – CIMC e têm atuado através da Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI. Neste módulo final, somaram-se ao grupo representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica – COICA, uma delegação com 10 representantes da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME e outra delegação com mais 10 indígenas do Mato Grosso que, a convite da OPAN, está iniciando um processo de formação em incidência na temática do clima; formando um grupo total de lideranças indígenas participantes do Seminário com 35 povos distintos.

Este seminário final teve a proposta de reunir as duas turmas – que não se encontraram durante a formação – para um momento de troca de experiências de atuação e de incidência política no tema das mudanças climáticas. O Seminário teve também em sua pauta a atualização do processo de incidência política internacional, com ênfase na preparação para a COP25 e a difusão da proposta de estruturação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, que está sendo criada com base no Acordo de Paris, a partir da incidência do Fórum Internacional de Povos Indígenas para Mudanças do Clima, no Órgão das Nações Unidas para Mudanças do Clima (UNFCCC, sigla em inglês). Trata-se de um mecanismo que tem por objetivo ampliar e oficializar os espaços de participação e engajamento dos povos indígenas nas negociações e debates internacionais sobre o clima, garantindo a sua efetiva participação na elaboração de políticas, financiamentos e ações voltados para o enfrentamento aos impactos das mudanças climáticas, levando em conta as especificidades, demandas e colaborações dos povos envolvidos.

Diferentemente dos módulos anteriores, que ocorreram em Brasília, o seminário final da Formação aconteceu em Recife, em paralelo à Conferência Brasileira de Mudanças do Clima, realizada pelo Instituto Ethos, onde as lideranças puderam, além de acompanhar os debates e painéis da conferência, ter uma experiência prática de incidência política, participando de mesas e de um painel focado nas percepções e estratégias dos povos indígenas em relação às mudanças climáticas nos seus territórios.

Ocupando os espaços

O Seminário teve início no dia 06 já com uma oportunidade de incidência: a participação na abertura da Conferência Brasileira de Mudanças do Clima. Paulo Tupiniquim, representante da APOINME foi convidado para se juntar à mesa de abertura, composta por representantes dos governos estaduais do nordeste, pelo prefeito de Recife, e por Caio Magri, diretor-presidente do instituto Ethos. Durante a cerimônia, foram apresentadas duas declarações de compromisso da sociedade civil, setor público e privado com a agenda do clima, florestas e desenvolvimento sustentável: a Declaração do Recife, que sugere às empresas assumir publicamente compromissos de redução de emissões e zerar o desmatamento ilegal em toda cadeia de valor; aos governos, como criar e implementar medidas de mitigação às mudanças climáticas; e para as organizações civis, como estabelecer parcerias e intercâmbio de soluções para otimizar as ações de enfrentamento à crise climática; e a Carta dos Órgãos Estaduais de Meio Ambiente pelo Clima, apresentada pela Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema) e assinada por representantes de todos os estados do país e do Distrito Federal. A carta ratifica o impacto das mudanças do clima em escala regional e local. Também reconhece o papel dos Estados na promoção da adaptação aos eventos climáticos, bem como na adoção de um modelo de desenvolvimento de baixo carbono.

Após a cerimônia oficial de abertura, na qual apenas autoridades e representantes de empresas e do Instituto Ethos se pronunciaram, teve início uma abertura indígena da Conferência, onde discursaram Paulo Tupiniquim e Valéria Paye, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB. Em suas falas, as lideranças chamaram atenção para a ausência de compromissos relacionados à demarcação, à vigilância e à gestão ambiental e territorial das Terras Indígenas – mundialmente reconhecidas como barreiras contra o desmatamento e, por isso, fundamentais para o controle da temperatura global –, e à valorização dos modos indígenas de manejo do ambiente. “Observei que na carta dos órgãos estaduais constam 17 itens, pena que já assinaram, porque eu gostaria de sugerir a inclusão do 18° item, a demarcação de TIs. Falou-se tanto de meio ambiente e de preservação, mas esqueceram de falar dos nossos territórios, que conservam e protegem o meio ambiente. Onde tem TI, tem floresta preservada, e os recursos naturais estão intactos”, lembrou Paulo. Já Valéria enfatizou a fundamental importância dos conhecimentos indígenas para o enfrentamento às mudanças climáticas. “Na abertura da conferência, os representantes dos estados do nordeste falaram de muitas formas de mitigar as mudanças climáticas, mas em nenhum momento citaram a contribuição dos modos de vida dos povos indígenas para o combate ao aquecimento global. Valorizar os conhecimentos indígenas nesse processo é muito importante”, alertou.

Outra oportunidade de incidência dos povos indígenas em espaços da Conferência foi o painel Os Povos da Floresta e as Mudanças Climáticas, que ocorreu no espaço Sinspire, no final da tarde do dia 07, no qual os participantes do seminário final, divididos em grupos por região (Acre, Amapá, Mato Grosso, Maranhão, Roraima, Rio Negro, Vale do Javari, Nordeste), puderam falar ao público da conferência sobre as principais ameaças aos seus territórios atualmente, sobre os impactos das mudanças climáticas já percebidos em suas terras, e sobre como as lideranças e comunidades estão se organizando para enfrentar a crise climática no âmbito local, regional, nacional e internacional. O painel contou com a presença do diretor-presidente do Instituto Ethos, Caio Magri, que destacou a importância da participação indígena e da incorporação dos conhecimentos indígenas na elaboração de saídas para as mudanças climáticas, e se desculpou publicamente, em nome da organização do evento, por Paulo Tupiniquim não ter tido a oportunidade de falar na mesa de abertura da Conferência.

Conectando contextos

A tarde do dia 06 e o dia 07 foram dedicados à troca de experiências entre os participantes do Seminário Final. Reunidas na ETE Porto Digital, as lideranças relataram umas às outras como têm trabalhado a questão das mudanças climáticas, trazendo experiências que com variadas estratégias e níveis de atuação. Sinéia do Vale, coordenadora do Departamento de Gestão Territorial e Ambiental, e Maria Betânia Mota de Jesus, secretária-geral do Movimento de Mulheres, apresentaram as ações do Conselho Indígena de Roraima (CIR) para o enfrentamento e a adaptação às mudanças climáticas nas comunidades, e para a incidência política em defesa dos direitos indígenas nas instâncias internacionais onde a crise climática é discutida. “As mudanças climáticas já chegaram nas comunidades. Em Roraima, só temos duas estações, inverno e verão, e ultimamente as estações têm se prolongado muito. Isso afeta o nosso plantio, por isso, montamos um banco de sementes resistentes às ações climáticas, e estamos fazendo experiencias para ver quais dessas sementes são mais resistentes ao inverno e ao verão”, contou Sinéia. Além do banco de semente, o CIR está executando um projeto de florestamento de áreas de lavrado, para o armazenamento de sementes de árvores madeiráveis. Todas essas ações, como explicou Maria Betânia, envolvem também as escolas, engajando as crianças e jovens desde cedo na mitigação da crise climática.

Oreme Ikpeng, representante da Associação Terra Indígena do Xingu – ATIX, falou sobre o trabalho desenvolvido pelas Yarang, mulheres ikpeng que há 10 anos coletam sementes nativas para a ações de reflorestamento de áreas degradadas, como as nascentes nas cabeceiras dos rios do território indígena. “Nesses 10 anos, 10 toneladas de sementes foram coletadas pelas Yarang, e um milhão de árvores foram plantadas nas cabeceiras dos rios”, contou Oreme.

O cuidado com as águas também é central no trabalho desenvolvido nas comunidades krikati do sudoeste do Maranhão, como relatou Silvia Puxcwyj, representante da Wyty-Catë. “Nós vivemos no bioma do Cerrado, berço das águas, e percebemos que as áreas de nascente precisavam de atenção especial, pois estavam muito degradas, algumas já na UTI. Um dos afluentes diretos do rio Tocantins, onde meu povo pescava, secou pelo 3° ano consecutivo. Idealizamos um projeto há 5 anos para a construção de um viveiro de mudas de espécies do Cerrado para recuperação das nascentes da TI Krikati, que hoje está sendo concretizado”, explicou Silvia.

Ronaldo Baniwa e Elizângela Baré, representantes da FOIRN, destacaram suas atuações enquanto multiplicadores dos conhecimentos sobre mudanças climáticas nas comunidades do alto rio Negro. “Eu sempre compartilho o conhecimento que recebi na formação com a minha comunidade. Levei a discussão das mudanças climáticas para as oficinas de elaboração do PGTA e do protocolo de consulta”, contou. Ronaldo também é Agente Indígena de Manejo Ambiental (AIMA), e junto com os demais agentes, desenvolve atualmente um projeto de construção do Sistema de Monitoramento Ambiental e Climático da Bacia do Rio Negro, um banco de dados sobre os ciclos econômico-ecológicos e socioculturais tradicionais dos povos do rio Negro, de acordo com os conhecimentos dos mais velhos, e sobre as transformações já percebidas nesses ciclos, devido às mudanças climáticas. Já Elizângela, coordenadora do Departamento de Mulheres da FOIRN, destacou o seu trabalho na mobilização das mulheres e dos jovens para a gestão territorial e para a incidência política. “Trabalho compartilhando o que aprendi com as mulheres, mostrando para elas o seu papel fundamental na preservação da floresta e na identificação dos sinais de mudanças climáticas. Também me dedico à formação dos jovens e crianças, porque as próximas gerações precisam estar prontas para assumir a incidência política quando nós não estivermos mais aqui”, explicou Elizângela.

Viseni Waiãpi, representante do Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina,  contou que tem acompanhado as discussões em torno da estruturação do Fórum Amapaense de Mudanças Climáticas e Serviços Ambientais (Famcsa), instância que reúne representantes de órgãos ambientais e da sociedade civil para debater e consolidar uma política pública estadual para preparar o Amapá para as mudanças climáticas e compensar a população pela preservação das florestas do estado. “As discussões que estavam paralisadas, foram retomadas este ano, e os povos indígenas foram chamados para as reuniões. Eu estarei representando o povo Wajãpi e incidindo para que a contribuição dos povos indígenas para a mitigação das mudanças climáticas seja reconhecida nas políticas públicas criadas pelo estado do Amapá”, afirmou Viseni. Rosenã Waiãpi, por sua vez, falou de como os Wajãpi estão se armando para proteger o seu territórioatravés de seu protocolo de consulta, que já está sendo colocado em prática na primeira consulta baseada em um protocolo autônomo de um povo indígena no Brasil.

Natalino Mayuruna e Edimilson Nakua, representantes da OGM, relataram que a TI Vale do Javari está perigosamente vulnerável a invasões de pescadores, caçadores, madeireiros ilegais, já que a Funai, enfraquecida e dominada por setores anti-indígenas ligadas ao ruralismo, está incapacitada para a fiscalização da segunda maior TI do Brasil. Só este ano foram 3 ataques à base da Funai na TI.

Tipuici Manoki, representante dos povos indígenas da bacia do rio Juruena, falou sobre a articulação Rede Juruena Vivo, formada por organizações da sociedade civil, agricultores familiares, indígenas, estudantes, acadêmicos, coletivos (associações comunitárias e fóruns de mobilização social), servidores públicos e empresas interessadas em alternativas para o desenvolvimento local considerando a integridade da bacia do rio Juruena e buscando contribuir com espaços de participação popular nas discussões sobre gestão ambiental e recursos hídricos. Tipuici relatou que a rede tem sido um importante instrumento de mobilização e incidência política em defesa dos territórios da bacia. “Estamos numa frente de luta para que possamos ser consultados sobre as várias usinas hidrelétricas que saem no rio Juruena, e temos tentado levar esse debate para coincidir com o debate sobre crise climática”, explicou.

Puá Katukina, presidente da AMAAIAC, e Josias Maná, Agente Agroflorestal Indígena (AAI), apresentaram o trabalho de reflorestamento e implementação de agroflorestas nas 34 TIs do Acre, feito pelos 149 AAIs já formados, de 14 povos diferentes. José Marcondes, vice-presidente da AMAAIAC, alertou que com a mudança no governo estadual, as políticas públicas para mitigação das mudanças climáticas, e de recompensa dos povos indígenas pelo serviço de preservação da floresta, foram paralisadas. “O novo governo quer desenvolver o agronegócio no Acre, a preservação e os povos indígenas não são prioridades”, afirmou.

Também na tarde do dia 07, Sinéia do Vale e Patricia Zuppi socializaram com o grupo informações sobre o status atual e os próximos passos para a construção da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas. Sinéia e Patricia têm acompanhado e participado da pauta de elaboração da Plataforma, representando a RCA, desde o seu início em 2017 através do Caucus Indígena, das reuniões técnicas, das conferências do Clima e das Partes e, ainda, durante as sessões formais e informais do Órgão Subsidiário de Assessoria Técnica e Científica (SBSTA), onde ocorrem as negociações oficiais da Plataforma.. O seminário, portanto, oportunizou a socialização do conhecimento acumulado por ambas na participação nestes espaços com as demais lideranças do grupo, preparando-os para acompanhar as discussões em futuras oportunidades de incidência. Sinéia e Patricia apresentaram os objetivos principais da Plataforma, que são a valorização e compartilhamento de saberes e práticas tradicionais, a promoção de maior engajamento desses povos nos debates de Clima na ONU e a participação indígena de forma mais efetiva e equilibrada na criação e governança de políticas e financiamentos do Clima que os envolvam, levando em conta as suas realidades, especificidades e demandas. Ambas também relataram como se deu a Primeira Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (FWG) para criação do Plano de Trabalho de implementação da Plataforma, que ocorreu de 14 a 16 de junho deste ano, em Bonn. Na primeira reunião, foram discutidos o desenvolvimento da estrutura e de um Plano de Trabalho de Implementação da Plataforma, com duração de 2 anos (2020/2021), a adoção de salvaguardas de direitos para proteger o Conhecimento e Práticas Tradicionais compartilhados na Plataforma, e o desenvolvimento de pressupostos para assegurar a participação de titulares e praticantes indígenas de Conhecimento Tradicional neste processo de construção. Como informaram ambas, a Segunda Reunião do Grupo Facilitador ocorrerá durante a COP 25, que é é especialmente estratégica e importante para os povos indígenas pois marca, além da realização da segunda reunião, a agenda oficial de negociação para a aprovação do Plano de Implementação desta Plataforma para os próximos 2 anos, cuja previsão de início (caso aprovado) é 2020.

 

 

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