Reconhecimento internacional

Pela primeira vez como painelista numa atividade oficial da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC, Sineia Wapichana fala sobre o pioneirismo dos estudos de caso sobre mudanças climáticas nas terras indígenas de Roraima.

Andreia Fanzeres/OPAN

Sineia Wapichana, do CIR, no painel da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas na Conferência de Bonn, em junho de 2023.
Foto: Ianukula Kaiabi Suia/ATIX

Foram necessárias nove reuniões do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) até que uma representante indígena do Brasil fosse convidada para compartilhar percepções e experiências de enfrentamento às mudanças climáticas. Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), fez história em Bonn em 2023, cidade alemã que ela conhece tão bem. Por quase uma década ela acompanha esta agenda na sede da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) para, depois, fazer todos os anos o difícil caminho de volta para as comunidades, trabalhando localmente aquilo que se busca alcançar globalmente.

O convite para participar na condição de detentora de conhecimentos indígenas na Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima foi consequência direta das informações prestadas pela delegação brasileira sobre a influência indígena na construção do Plano Nacional de Adaptação do Brasil.

No dia 1º de junho, Sineia reportou aos membros da Plataforma e observadores sobre os estudos de caso de mudanças climáticas em Roraima elaborados 10 anos atrás em apenas três minutos a ela concedidos na reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (9FWG). Somada aos esforços de participação dos indígenas brasileiros nas instâncias da Convenção do Clima nos últimos anos, tal contribuição foi considerada tão relevante que Sineia finalmente recebeu a proposta de explicar com mais tempo e detalhes o trabalho local que desenvolve no Departamento de Gestão Ambiental e Territorial do CIR. 

Assim, no dia 7 de junho, em uma das duas atividades oficiais da Plataforma que aconteceram durante a Conferência SB58, que prepara o terreno para a COP28, Sineia fez uma apresentação de slides que, nas palavras do Secretariado da Plataforma, “deu exemplos concretos” do processo de elaboração de contribuições dos indígenas às políticas e ações climáticas.

Apresentação de Sineia Wapichana durante a Atividade 5 da LCIPP.
Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

“Nós, povos indígenas, somos os primeiros a sentir os impactos do que pra nós é a transformação do tempo e isso nos impulsionou a fazer um trabalho na nossa região para mostrar como podemos construir nossos planos para enfrentar as mudanças climáticas, tanto para contribuir com as políticas públicas do Brasil como para trazer como exemplo a outros países”, explicou Sineia. Ela referia-se a “AmazadPana’adinhan: percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas – Região Serra da Lua/RR”, publicação pioneira e ainda única no país, que foi referência para o subcapítulo indígena do Plano Nacional de Adaptação, de 2016, instrumento da Política Nacional de Mudanças Climáticas.

“Para mostrar como as transformações do tempo estão nos afetando, fizemos estudos de caso para saber como estava nossa vida cultural, a pesca, a caça, a agricultura. Dentro dos nossos estudos vimos que os rios aqueceram, os peixes regionais não estavam mais lá. O canto dos pássaros que guiavam as colheitas e plantações não acontecem mais. Como podemos ter políticas para enfrentar esses problemas? Nos planos de enfretamento não estão apenas nossa percepção holística, mas as demandas que devem ser fortalecidas com recursos públicos para enfrentarmos as mudanças climáticas”, aponta.

Plano de enfrentamento às mudanças do clima elaborado pelo Conselho Indígena de Roraima que foi referência para o PNA do Brasil

De Roraima ao Juruena e ao Ártico

Conforme ilustrou Sineia, a rotina das mulheres e o trabalho com as crianças têm sido importantes e reveladores daquilo que é prioridade no enfrentamento às mudanças climáticas. Por isso, elas recebem atenção especial nos planos de enfrentamento e nas várias iniciativas locais de formação e discussão sobre clima liderados por Sineia em Roraima.

A ação das mulheres é protagonista em vários outros contextos dentro e fora do país. Dineva Kayabi (povo Kawaiwete), que também observou as várias intervenções de Sineia e de indígenas do mundo inteiro nas discussões sobre clima em Bonn, recorre a um outro exemplo de percepção e adaptação às transformações hoje mais facilmente percebidas no tempo. Conforme conta Dineva, os Kawaiwete do rio dos Peixes, que vivem na bacia do rio Juruena, em Mato Grosso, cultivam e utilizam cinco tipos diferentes de amendoim. Mas do ano passado para este as indígenas não puderam preparar chicha nem mingau, o que teve um efeito direto na nutrição das crianças e na renda das famílias. “No mês de setembro, dá na mata frutinha chamada ‘chimico’. Ela é usada no nosso calendário como indicador. É ela que diz pra gente quando é hora de plantar o amendoim. Mas em 2022 a chuva atrasou e pela primeira vez não deu para plantar”, disse Dineva. Segundo ela, as sementes de amendoim ficaram guardadas em garrafas e sacos para que não se perdessem e, este ano, a expectativa é de que elas possam finalmente germinar.

Frutinha Chimico.
Foto: Dineva Kayabi/Rede Juruena Vivo-COIAB

O conhecimento tradicional indígena é um modo sistemático de pensar, baseado em evidências, observações e experiências intergeracionais de longo prazo. Foi o que defendeu num emocionante discurso Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, ressaltando que não é preciso ter Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) nem Balanço Global para saber que o Ártico está mudando. “Nossa visão do futuro é enraizada pelo passado. A ciência indígena, o conhecimento coletivo, guardam muitas respostas. São milhares de anos de observação. Nomeamos cada pedaço da costa, cada esquina de nossas terras. Nomear nosso território é uma forma de expressarmos nosso conhecimento. Esse tipo de observação nos permite inovar e prosperar no Ártico. Nós amamos nossa terra natal”, falou. “Antes dos cientistas, já estávamos falando de mudanças climáticas. E nós, Inuítes, queremos compartilhar esse conhecimento. Se protegermos o Ártico, protegeremos o planeta. Precisamos proteger a terra, a água, o nosso gelo. O respeito aos direitos indígenas é ação climática”, seguiu Lisa.

Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, na abertura da atividade 5 da LCIPP.
Foto: arquivo pessoal/redes sociais

A UNFCCC hoje reconhece que povos indígenas e comunidades locais detém valores, perspectivas de mundo e práticas tradicionais que contribuem com os esforços coletivos de enfrentamento às mudanças climáticas e à construção de resiliência. Mas sua marca nas políticas climáticas locais, nacionais e internacionais ainda não são conhecidas nem tão visíveis. “Com pouquíssimas exceções, podemos dizer que os povos indígenas são invisíveis como detentores de direitos e de conhecimento. Nós somos representados pela ótica das vítimas, por sermos afetados e beneficiados por projetos. Mas essa é uma perspectiva muito limitada e que precisa ser mudada”, disse Lakpa Nuri Sherpa, um dos autores de um estudo que em 2022 analisou as metas climáticas de 10 países asiáticos (https://aippnet.org/indigenous-peoples-rights-in-ndcs-initial-observations-from-asia/).

Durante a apresentação em um evento paralelo dos resultados de um estudo desenvolvido pela rede Asia Indigenous Peoples Pact, que abrange 14 países, Sherpa ressaltou também a discriminação sistemática contra povos indígenas quando o assunto é seu envolvimento nas discussões e políticas climáticas e a importância do trabalho nas comunidades. “Mudança climática é uma palavra que não existe na maioria das línguas indígenas. É difícil de explicar. Os estudos que fazemos são importantes para discussão em espaços como este, mas têm que ser também úteis para as comunidades. O nível de atuação nacional e local são muito importantes, temos que estar lá”, reforça Sherpa, alinhando-se e reforçando a trajetória de luta e persistência de Sineia Wapichana, em Roraima.

“Precismos ter os direitos dos povos indígenas garantidos, com nossos conhecimentos somados aos científicos, para não só identificar a percepção, mas para encontrarmos saídas para diminuir o aquecimento do planeta. Os povos indígenas vêm contribuindo com seus saberes em todo o mundo. E eu trouxe essa experiência para dizer que é possível”, encerrou Sineia Wapichana, muito aplaudida.

A delegação indígena do Brasil na SB 58, em Bonn, teve o suporte da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Clique aqui para assistir à apresentação de Sineia Wapichana e dos demais convidados da Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima, que ocorreu em Bonn no dia 7 de junho de 2023: https://unfccc.int/event/annual-training-workshop-for-parties-and-constituted-bodies-transforming-climate-action-through

Povos indígenas apresentam exigências para a COP28

Envolvido em escândalos, Sultan Ahmed Al Jaber recebe líderes indígenas em Bonn, na Alemanha, e diz que seus pleitos serão prioridade na Conferência do Clima.

Andréia Fanzeres/OPAN

Brasileiros participam da reunião do Caucus Indígena com o presidente da COP28.
Foto: Patricia Zuppi/RCA

Representantes do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (Caucus Indígena) reuniram-se nesta quinta-feira, dia 8 de junho, com Sultan Ahmed Al Jaber, presidente da COP28. Alvo de protestos, envolvido em polêmicas sobre sua ligação com a indústria do petróleo e com a propensa falta de ambição no avanço das negociações, em especial sobre o fim da queima de combustíveis fósseis, Ahmed Al Jaber atendeu a um pedido do Caucus Indígena para uma conversa durante a Conferência SB58, em Bonn, na Alemanha. Os povos indígenas das sete regiões socioculturais reconhecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) exigiram condições adequadas de acessibilidade e participação na COP28, que será realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023 em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Lideranças indígenas do Brasil participaram da reunião, entre elas Dineva Kayabi, convidada a sentar-se na mesa principal pela co-presidente do Caucus Indígena, Hindou Ibrahim, ao lado de outros detentores de conhecimentos tradicionais e jovens indígenas. Ahmed Al Jaber ouviu de Hindou pedidos específicos, como para que na COP de Dubai haja garantido um pavilhão indígena, condições para diálogos de alto nível com as Partes da Convenção do Clima (Estados) e um dia dedicado aos povos indígenas na COP28, com foco no tema de Justiça de Transição Energética. Frisou, ainda, que os povos indígenas devem estar nos eventos mais importantes e decisivos.

Na primeira intervenção realizada por cada representante regional indígena, o jovem panamenho Onel Massardule, em nome da América Latina e Caribe, lembrou que em dois anos o Brasil deverá sediar uma COP e que, mais do que nunca, os brasileiros precisam ter o direito de participar da convenção usando seu próprio idioma. Isso não é assegurado hoje nos eventos da Convenção do Clima porque o português não é língua oficial da ONU e converge com um dos principais pleitos que há anos os representantes indígenas do Brasil vêm apresentando aos espaços oficiais da UNFCCC.

Os líderes expressaram preocupação com a disponibilidade e viabilidade de acomodações, emissão de vistos, em particular de indígenas da própria Ásia, região que ancora a COP neste ano. Também pautaram a importância da inclusão dos povos indígenas nas agendas estratégicas, como “Perdas e Danos”, argumentando que os impactos das mudanças climáticas ocorrem no nível local, afetando os territórios e povos, que devem ter acesso direto a fundos para lidar com esta finalidade. Os povos indígenas pediram que a Presidência da COP28 tenha responsabilidade moral e política para defender seu posicionamento.

A presidência da COP28 assegurou que a pauta indígena será prioritária. “Nós estamos trabalhando para dar uma resposta mais compreensiva e holística para a participação efetiva dos povos indígenas na COP28. Tenho certeza de que não vamos deixar ninguém para trás”, disse Ahmed Al Jaber.

Reunião da Presidência da COP28 com povos indígenas na sede da UNFCCC, em Bonn/Alemanha.
Foto: Patricia Zuppi/RCA

A delegação indígena do Brasil em Bonn é composta por Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC), Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cassimiro Tapeba, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e membro do CIMC, Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Xingu (ATIX), Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliel Rondon (Fepoimt), Kaianaku Kamaiura (Coiab) e Dineva Maria Kayabi (Coiab e Rede Juruena Vivo) e tem apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Uma plataforma cada vez mais diversa e plural

Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção do Clima contempla propostas da delegação brasileira, avançando na superação dos desafios de inclusão.

Andreia Fanzeres/OPAN

IX Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC.
Foto: Kaianaku Kamaiurá/COIAB

Em meio ao cenário a cada ano mais desafiador para reverter o descaminho que afasta a todos da meta mundial de limitar o aquecimento do planeta em 1.5ºC, os povos indígenas foram mais uma vez reconhecidos como lideranças globais para a sonhada transformação que levaria ao alcance das metas do Acordo de Paris, nos discursos de abertura da 9ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês), que tradicionalmente abre as atividades da Conferência do Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Técnico (SBSTA) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), em Bonn, na Alemanha.

“O conhecimento indígena é elemento crucial para enfrentar os desafios climáticos e sabemos que tratar a natureza como mercadoria não dá certo. A liderança dos povos indígenas é mais importante do que nunca”, afirmou Simon Stiel, secretário-executivo da UNFCCC.

Falar é fácil e, neste caso, este é o tom que se espera de quem tem o papel de desatar os nós de 197 países para reduzir as emissões drasticamente em menos de sete anos. Ainda assim, em se tratando do ritmo da diplomacia climática, e considerando o penoso percurso dos povos indígenas na construção de mecanismos de participação, o que acaba de acontecer em Bonn entre 31 de maio e 3 de junho de 2023 é um marco, especialmente para a delegação indígena brasileira. Ela não só teceu contribuições técnicas precisas ao trabalho da Plataforma, como as viu refletidas nas decisões e encaminhamentos feitos por esta instância, que é única em toda a estrutura da UNFCCC.

Em Sharm el-Sheikh, no Egito, os indígenas brasileiros reivindicarem melhores condições de transparência e inclusão na Plataforma, sobretudo quanto às dificuldades de tradução durante sua última reunião na COP27, uma vez que o português não é idioma oficial da UNFCCC. Este ano aconteceu algo bem diferente, a começar pela metodologia da própria reunião. Quatro trabalhos em grupo em quatro dias de reunião representaram, na prática, a confirmação de um modelo testado de modo ainda tímido no Egito para ampliar as possibilidades de participação dos observadores, indígenas e não indígenas, nas reuniões da Plataforma. O Brasil constituiu um grupo de falantes da língua portuguesa que, desta maneira, conseguiu aportar contribuições às agendas de Adaptação, Balanço Global, às atividades na COP28, em Dubai, e no novo Plano de Trabalho 2025-2027.

Sob a condução das recém eleitas co-presidentes da Plataforma, Gun-Britt Retter, representante dos povos indígenas do Ártico, e Tiana Carter, que também é indígena e atua em nome do Grupo de Países da Europa Ocidental e Outros (WEOG, na sigla em inglês), a reunião revisou os progressos em cada uma das atividades do Plano de Ação 2022-2024 da Plataforma, entre eles os que pretendem proporcionar maior engajamento dos povos indígenas e comunidades locais com os processos e instâncias da UNFCCC e também dos demais órgãos vinculados ou não à Convenção com a pauta indígena.

Harry Vreuls, presidente do SBSTA, disse que ficou impressionado com as contribuições dos povos indígenas para o tema de Adaptação durante o 5º Workshop sobre Adaptação do Programa de Trabalho da Meta Global de Adaptação (GGA, na sigla em inglês), realizado em março deste ano, em que foram apresentadas iniciativas ligadas ao reconhecimento constitucional dos direitos da natureza no Equador, o processo de restauração das zonas costeiras nas Ilhas Maldivas e a implementação do manejo de fogo por indígenas na Austrália. “Vocês são líderes nas suas regiões e quem realmente move as políticas climáticas para frente com suas experiências e conhecimento”, afirmou. Ele assegurou que os povos indígenas podem contar com seu comprometimento no apoio à Plataforma e aos alcances de seus propósitos.

Grupo de Trabalho da Delegação do Brasil.
Foto: Kaianaku Kamaiurá/COIAB

Em Bonn, a delegação indígena brasileira contou brevemente sobre o processo de fortalecimento da agenda de Adaptação a partir do exemplo do Conselho Indígena de Roraima (CIR) na elaboração dos primeiros Planos de Enfrentamento Indígenas de Mudanças Climáticas, em 2014, que influenciaram o Plano Nacional de Adaptação. E citou o caso das comunidades Manchineri e Jaminawa, da Terra Indígena Mamoadate, Riozinho do Yaco, quanto à perda de sementes de milho, arroz, batata e mandioca, além de peixes no alto curso dos rios, obrigando as comunidades a se adaptarem a outro tipo de alimentação (não tradicional).

No reporte de contribuições sobre o Balanço Global, a demarcação das terras indígenas e a valorização de todos os biomas e povos do país foram ressaltados pelo grupo como parte das medidas necessárias para que o Brasil, enquanto sétimo emissor global de emissões, cumpra sua meta climática. E, como ilustrado através de slides na reunião, não conseguirá honrá-la caso o PL 490 e a tese do marco temporal sejam aprovados.

Élcio Manchineri, Coordenador Geral da COIAB, apresenta os resultados do trabalho em grupo da delegação brasileira sobre o Balanço Global (GST).
Foto: Patricia Zuppi/RCA

Revisão da Plataforma em 2024

A Plataforma, criada pelo Acordo de Paris em 2015 e implementada a partir da instituição de um Grupo de Trabalho Facilitador em 2018, em Katowice, na COP24, é um órgão da UNFCCC que tem em sua composição sete cadeiras para membros indígenas e sete para as Partes da Convenção, ou seja, os Estados. Há, ainda, mais três para comunidades locais, porém, até hoje estão vagas. Ela será revisada na COP29, em 2024. Por isso, desde já a UNFCCC abriu chamada para avaliação de seus trabalhos, com foco principal nos resultados alcançados e na representação de comunidades locais, assuntos que já demonstraram ser bastante delicados.

A partir de falas fortes, tanto por parte dos membros, como dos observadores, ficou clara a necessidade de que a Plataforma ganhe mais importância dentro do processo de negociação e que sejam instituídos mecanismos de monitoramento das decisões que saem da Plataforma para as demais instâncias da UNFCCC, como sugeriu Kimaren Ole Riamit, da organização Indigenous Livelihoods Enhancement Partners (ILEPA), do Quênia. “A Plataforma não foi criada para ser um corpo desconectado do sistema. Isso é preocupante. Temos que dar vida ao trabalho da Plataforma porque não é suficiente participar, mas influenciar as decisões”, propôs.

“As pessoas comentam que a Plataforma tem pouca relevância, mas ela é uma conquista dos povos indígenas depois de muitos anos de luta e tem um papel muito importante de ser um espaço seguro para discussão e encaminhamento de decisões para o processo de negociação climática através do SBSTA”, avaliou Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC).

Sineia Wapichana/CIR, reconduzida à coordenação do CIMC, reporta os resultados da delegação brasileira nas discussões dos grupos de trabalho sobre Adaptação e revisão da Plataforma.
Foto: Patricia Zuppi/RCA

A adoção de metodologias culturalmente adequadas aos povos indígenas considerando a diversidade de línguas e níveis de envolvimento com os processos da UNFCCC pela Plataforma em seu próximo ciclo de atividades foi uma contribuição do Brasil contemplada no rascunho do documento final da reunião. Outra questão crucial se refere ao encontro anual de detentores de conhecimentos tradicionais e aos encontros regionais, que deveriam melhorar o engajamento das comunidades e aprimorar seus mecanismos de transparência, inclusão e apoio nas várias regiões socioculturais existentes. Este também foi um ponto que passou, agora, a ser tratado como decisão desta instância.

Desenho de Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da ATIX, para a apresentação dos resultados e contribuições da delegação brasileira nos grupos de trabalho.
Foto: Patricia Zuppi/RCA

Uma plataforma nacional

Conforme ressaltou Lapka Nuri Sherpa, ponto focal para a Ásia do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas, conhecido como Caucus Indígena, o que se viu na COP27 foi a maior representação de povos indígenas entre todos os eventos da UNFCCC e isso é fruto de um processo de conquistas. “Ao mesmo tempo em que precisamos celebrar esses avanços no nível internacional, com uma maior visibilidade para temas importantes como perdas e danos, soluções oriundas dos conhecimentos indígenas e uma abordagem baseada em direitos, sabemos que nosso desafio é levar esta Plataforma para os territórios, por isso enfatizo o trabalho de cada um, no nível nacional e local também”, disse Sherpa.

No Brasil, a criação de uma plataforma nacional é um objetivo a cada dia mais próximo, na medida em que abrem-se condições para a organização dos povos indígenas entorno da pauta climática por meio do recentemente relançado Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) e da Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI). “Temos muitas experiências no Brasil que podem contribuir com as discussões. Precisamos comunicá-las e vamos tentar trabalhar criando a nossa plataforma”, avalia Toya Manchineri, coordenador geral da Coiab.

Conforme Patricia Zuppi, secretária-adjunta da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), os avanços vistos na Plataforma em relação à incidência indígena brasileira neste espaço de atuação técnica na pauta de clima são resultados de um trabalho de vários anos. “Os esforços que agora ampliam possibilidades de incidência dos indígenas do Brasil incluem capacitações semestrais para atuação na Plataforma, a organização de equipamentos e intérpretes para a língua portuguesa, as articulações com o secretariado da UNFCCC e com o Caucus Indígena para incidir sobre mudanças nas dinâmicas de participação e na disponibilização de documentos em português”, elenca. “Foi muito importante fazer um alinhamento anterior. Viemos mais preparados. E desta vez pudemos nos comunicar em português”, ressalta Manchineri.

Delegação do Brasil durante o trabalho em grupo.
Foto Kaianaku Kamaiurá/COIAB

A delegação indígena do Brasil em Bonn é composta por Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC), Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cassimiro Tapeba, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e membro do CIMC, Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Xingu (ATIX), Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliel Rondon (Fepoimt), Kaianako Kamaiura (Coiab) e Dineva Maria Kayabi (Coiab e Rede Juruena Vivo) e tem apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Dineva Kayabi/Coiabi e Cassimiro Tapeba/ Apoinme/APIB lideram junto com a delegação indígena do Brasil a cerimônia de encerramento da IX Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma LCIPP.
Foto: Patricia Zuppi/RCA

A PNGATI E A ESPERANÇA POR DIAS MELHORES

Foto: Edivan Guajajara/Mídia Índia

De diversas regiões da Amazônia, representantes indígenas compartilham na COP27 reflexões e experiências sobre a PNGATI à luz do novo governo no Brasil.

Por Andreia Fanzeres/OPAN

Nesta quarta-feira, aconteceu no Pavilhão Indígena da COP27 o Painel “A Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) e os povos da Amazônia brasileira”. O objetivo foi demonstrar como esta é uma política estratégica no contexto da implementação de ações climáticas na Amazônia, que merece ser mais conhecida e apoiada. O evento reuniu lideranças indígenas de diversos estados amazônicos, que compartilharam experiências e visões sobre esta importante política pública para os povos indígenas do Brasil.

Os planos de gestão territorial e ambiental (PGTAs), um dos instrumentos para implementação da PNGATI, foram foco da análise dos painelistas. “Os planos precisam ser construídos de baixo para cima, pela coletividade e esse é um processo que pode levar anos de conversa”, destacou Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). Zé Bajaga, da Federação das Organizações Indígenas do Médio Purus (Focimp) apontou que em sua região há 48 terras indígenas, mas só 8 têm planos de gestão. “Nós fazemos o trabalho de proteção territorial e de nossas águas”, ressaltou.

Foto: Jessica Maria Wapichana/CIR

“A formação também é importante e nos leva a espaços de incidência onde podemos compartilhar nossas experiências para a gestão de nossos territórios”, destacou Jessica Maria Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ela falou sobre protagonismo indígena no levantamento de informações e na produção de conhecimento que levam à construção de instrumentos como os planos de enfrentamento às mudanças climáticas e os calendários etnoecológicos. Também do CIR, Jabson Nagelo explicou como se dá o trabalho das brigadas indígenas em Roraima e do uso da tecnologia aliada ao conhecimento tradicional para fazer o monitoramento territorial.

Para Marciely Tupari, coordenadora secretária da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a formação sobre PNGATI e a implementação dela segue muito importante para os povos indígenas, e seria importante avançar na realização de intercâmbios entre povos que têm e os que ainda não têm planos de gestão sendo implementados nos territórios. “Muitas pessoas ainda não conhecem a PNGATI e não têm planos de gestão. Isso atrapalha a execução de projetos nos territórios. Precisamos aproximar os povos desse instrumento de política territorial tão importante, principalmente as mulheres. Eu era criança durante as consultas para a construção desta política e aprendi sobre ela porque minha mãe estava participando da construção”, relatou. “As mudanças climáticas afetam em especial mulheres e crianças e os planos de vida precisam garantir uma atenção especial a isso”, completou Dadá Baniwa, coordenadora do departamento de mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

Dineva Kayabi, da Rede Juruena Vivo e coordenadora de mulheres da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), explicou que a Terra Indígena Apiaká-Kayabi, onde vive, ainda não tem plano de gestão e esse instrumento poderia ajudar a enfrentar as muitas ameaças que pressionam sua terra. “Na bacia do rio Juruena há 172 usinas hidrelétricas nos ameaçando, mas 70% delas ainda estão no papel. A Usina de Castanheira, em especial, pode afetar diretamente meu território porque podemos perder nossos peixes, a pescaria do tracajá, importante para a cultura dos Apiaká, além dos nossos remédios da mata, o acesso às sementes e outros.

Esses tantos problemas enfrentados pelos povos indígenas em seus territórios reforçam a relevância da retomada da PNGATI como uma política ainda mais forte no Brasil. De acordo com Sineia Bezerra do Vale, do CIR, que moderou o painel, esta é uma política vigente, que resistiu com firmeza aos últimos quatro anos de um governo que retrocedeu na proteção aos direitos indígenas porque foi construída a partir de um processo de consulta. “Temos uma grande expectativa de que com o novo governo no Brasil os nossos espaços internos de discussão e incidência sejam retomados. Se esta quer ser a COP da Implementação, o que a PNGATI precisa é de apoio e financiamento para ela acontecer no chão”, ressaltou. Alberto Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), fez uma relevante colaboração ao painel ao final, comentando que com a retomada dos espaços como o Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI, do qual fazia parte, haverá melhores condições de interlocução entre os povos indígenas e o governo. “Até agora estamos pagando a conta sozinhos. Precisamos de apoio. Essa empreitada não é só nossa”, lembrou.

Sineia Bezerra do Vale/CIR. Foto: Edivan Guajajara/Mídia Índia

O evento foi organizado pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN), além de CIR, COIAB, ATIX, FOIRN, Rede Juruena Vivo, Fepoimt, Focimp, com o apoio da Fundação Rainforest Noruega, Fastenaktion, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Instituto de Educação do Brasil (IEB) e Instituto Socioambiental (ISA).

Brasil dá seu recado no Egito

Delegação da Amazônia brasileira abre trabalhos na COP27 com contribuições técnicas na reunião da Plataforma Indígena da UNFCCC.

Barreira do idioma ainda é desafio.

Por Andreia Fanzeres/OPAN

Participantes da VIII Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, no Egito

O Brasil marcou presença na 8ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), que aconteceu de 1 a 4 de novembro em Sharm-el-Sheikh, no Egito. Como de praxe, a reunião desta instância oficial da UNFCCC acontece antes da abertura oficial da conferência do clima.

A novidade, nesta COP27, ficou por conta do momento inédito em que a delegação indígena da Amazônia brasileira aportou contribuições técnicas ao Plano de Trabalho da Plataforma. E demonstrou, de forma inequívoca, que se houvesse condições mais equânimes de participação por meio da garantia de tradução para o português, poderia ter feito muito mais.

A língua portuguesa não é um dos idiomas oficiais da UNFCCC. Por isso, nas reuniões dos órgãos da convenção do clima, não é fornecida estrutura de tradução, como fazem para o espanhol, árabe, francês, inglês, russo e chinês. A delegação brasileira tem comparecido às reuniões do grupo de trabalho facilitador da Plataforma com o apoio de uma intérprete e com aparelhos próprios de tradução. Apesar dessa solução provisória, são necessários esforços adicionais para superar as interferências e ruídos de um sistema paralelo de tradução, que, mesmo assim, não dá condições de comunicação amplas e equivalentes às dos demais observadores.

Dineva Kayabi apela por melhores condições de participação dos falantes da língua portuguesa nas reuniões da Plataforma (Foto: Andreia Fanzeres/OPAN)

Até agora, não há medidas para a solução do impasse. “A Amazônia tem centenas de povos indígenas que protegem milhares de hectares de florestas fundamentais para o equilíbrio do clima. A falta da tradução das reuniões para o português tem prejudicado a nossa participação. Precisamos criar pontes e não muros”, discursou Dineva Kayabi na plenária do último dia de reunião da Plataforma, em apenas dois minutos a ela concedidos.

Para Hindou Ibrahim, notória ativista indígena do Chad e ex-presidente do grupo de trabalho facilitador entre 2020 e 2021, a falta de tradução implica numa questão de inclusão e acessibilidade às discussões que interessam aos povos indígenas e comunidades locais, sendo uma barreira ao compartilhamento e valorização do seu conhecimento tradicional, que é uma das funções da Plataforma. “É obrigação da Plataforma encontrar as facilidades, inclusive tecnológicas, para que os intérpretes digam de um modo que todos possam entender o que os povos indígenas estão falando”, afirmou. “As línguas oficiais das Nações Unidas não atendem e não garantem a participação de detentores de conhecimento. É preciso flexibilidade”, pontuou Hindou enquanto relatava a realização de uma das atividades da Plataforma. Segundo ela, há muitos povos de seu país que não falam francês nem árabe, razão pela qual a tradução foi garantida na reunião bi-regional da África e Ásia, que ocorreu em N’Djamena, no Chad, em outubro deste ano.

Jéssica Wapichana é porta-voz do grupo técnico indígena do Brasil durante a reunião da Plataforma

“Este é um espaço que precisa ser conquistado pelos brasileiros na Plataforma e isso vai beneficiar não só a Amazônia, mas pessoas de outros países também”, avalia Jessica Wapichana, jovem gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

Jéssica foi a porta-voz da delegação brasileira que constituiu um grupo técnico durante a reunião da Plataforma, quando foram solicitadas contribuições concretas ao plano que implementa as atividades definidas em 2021 e deverão ser concluídas até 2024. Afinal, a chamada “COP da implementação” foi lema também da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC.

Jéssica Wapichana relata as contribuições da delegação da Amazônia brasileira no plano de trabalho da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.

Contribuições técnicas

Uma das principais sugestões da delegação indígena brasileira foi ligada à atividade 5 do plano de trabalho, que é a promoção de treinamentos para membros dos países e agências da ONU para um maior engajamento nas questões indígenas. Neste caso, a proposta é de ampliar esforços para que novos países engajem-se na plataforma, que é composta de modo paritário por indígenas e representantes dos Estados, e não apenas aqueles que já estão envolvidos. Isso poderá promover melhores condições de incidência dos povos indígenas em suas pautas nas mesas de negociação da UNFCCC, pois apenas os países têm poder de voto. Esta proposta responde objetivamente ao cenário exposto por Pasang Sherpa, diretora executiva do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento dos Povos Indígenas do Nepal (Cipred). “Os povos indígenas têm também um papel importante trabalhando com os governos porque as mudanças têm que acontecer em todos os níveis. O engajamento dos Estados não tem sido suficiente”, observou.

Outra contribuição importante da delegação brasileira referiu-se à atividade 3, que busca identificar e disseminar informações sobre o desenvolvimento e o uso de currículos e materiais elaborados por povos indígenas ligados às questões climáticas destacando o conhecimento tradicional em sistemas educacionais formais e informais. Esse, aliás, foi um dos temas que suscitaram mais comentários e contribuições entre os membros e os observadores presentes em Sharm-el-Sheikh. “Em Camarões, é preciso estabelecer um sistema educacional diferenciado por causa da condição nômade dos povos”, comentou uma indígena do país.

Grupo do Brasil elabora contribuições para a Plataforma. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.

Walter Gutierrez, representante governamental do Grupo da América Latina e Caribe (Grulac), que é indígena aymara, compartilhou exemplos da Bolívia na construção de currículos próprios dos povos indígenas com um eixo articulador comum: harmonia e equilíbrio com a Mãe-Terra. “Há povos que vivem a mais de 4.500 metros acima do nível do mar, onde a água disponível é salgada. Eles têm conhecimento para lavar o sal da água e semear. Na nossa Constituição, reconhecemos o modelo educacional sociocomunitário produtivo, buscando coerência da educação com a cultura e a língua dos povos. O conhecimento não está limitado aos livros. Ele é construído ao longo da vida e há formas diferentes de compartilhar esse conhecimento além da escola”, disse.

Lokol Paulo, indígena de Uganda, sugeriu que seria importante tecer esforços para documentar os diferentes sistemas de conhecimento. “Os saberes indígenas são dinâmicos, dependem das condições ambientais, dos territórios, está sempre mudando. Nós aprendemos com a experiência”, afirmou. “No sistema aborígine, nenhuma criança é reprovada. Quando ela chega aos 12 anos, já tem doutorado em ciências ambientais, biologia marinha, astronomia. Isso não se ensina no papel. Está no nosso DNA. Educação é soberania”, acrescentou o ancião Ray Minniecon, da Austrália.

Lokol Paulo, de Uganda, fala sobre a importância de documentar e proteger os sistemas de conhecimento dos povos indígenas. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.

O Brasil, nesse assunto, não fica para trás. “Nosso país tem larga experiência na construção de políticas públicas ligadas à educação indígena, valorizando o conhecimento dos povos no sistema educacional, seja formal ou informal. Por isso sugerimos que nos próximos anos nosso país tenha espaço para compartilhar na plataforma todas essas experiências”, falou Jessica Wapichana, enquanto relatava as contribuições do grupo de trabalho dos indígenas brasileiros.

Delegação RCA-OPAN participando dos trabalhos da Plataforma. Foto: Ianukala Kaiabi Suiá.

A Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e a Operação Amazônia Nativa (OPAN) trabalham em parceria na preparação e acompanhamento de indígenas da Amazônia brasileira em espaços de incidência internacional, como a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Na COP27, participam Sineia Bezerra do Vale, Jéssica Maria Wapichana, Jabson Nagelo (Conselho Indígena de Roraima), Dineva Maria Kayabi (Rede Juruena Vivo), Ianukula Kaiabi Suiá (Associação Terra Indígena Xingu), Dadá Baniwa (Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro), com tradução de Merel van der Mark e assessoria de Patrícia Zuppi (RCA), Andreia Fanzeres e Gustavo Silveira (OPAN).

Registros de avaliações da delegação realizadas em reuniões durante e após a participação na COP27

Governo não cumpre recomendação da ONU sobre Direitos Humanos

Relatórios mostram os retrocessos em direitos humanos e proteção ambiental. Documentos foram enviados ao 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal do Brasil, da ONU

Texto: Thaís Herrero | 30 de junho de 2022

No segundo semestre deste ano, o Brasil passará por mais uma rodada de avaliações por parte da Revisão Periódica Universal (RPU), da ONU. Em março, dezenas de organizações da sociedade civil enviaram seus relatórios de avaliação, entre elas estão a APIB, RCA e Iepé, que integram o  Coletivo RPU Brasil. Ao juntarmos e olharmos esses relatórios, ficam evidentes os retrocessos na agenda dos direitos humanos ao longo dos últimos anos.

Coletivo RPU Brasil, que reúne 31 organizações brasileiras que atuam junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e acompanham as revisões periódicas do Brasil, avaliou 242 recomendações feitas por países no 3o Ciclo do Brasil na RPU. Ao todo, 11 relatórios foram produzidos e enviados à ONU. 

As análises indicam a situação grave: quase metade (46%) de todas as recomendações, além de não terem sido postas em práticas, estão em retrocesso. Um terço (35%) estão em constante pendência.  Ou seja, ao somá-las, chegamos a 80% de recomendações descumpridas. Somente 17% das recomendações estão sendo implementadas parcialmente e apenas uma tem sido cumprida.

Obra Raízes da Humanidade, da artista Nat Grego, que ilustra a capa do relatório Relatório Povos Indígenas e Meio Ambiente. O documento foi preparado pelo Coletivo RPU Brasil.


Os relatórios retratam o enfraquecimento da capacidade das instituições públicas em servir à população do país. Em relação à comunidade internacional, indicam violações do Estado brasileiro em relação aos direitos socioeconômicos e ambientais.

Especificamente no caso dos povos indígenas, das 34 recomendações recebidas pelo Brasil no 3o Ciclo, nenhuma foi cumprida segundo análise dessas organizações. E a maioria está, inclusive, em retrocesso, como aquelas que dizem respeito a demarcação de terras indígenas, prevenção do racismo e discriminação, proteção de lideranças indígenas, obrigação de realizar consultas prévias. A análise é fruto do levantamento de nove relatórios apresentados por organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos sobre povos indígenas e meio ambiente para o 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Abaixo, resumimos alguns dos levantamentos do Relatório Povos Indígenas e Meio Ambiente, preparado pelo Coletivo RPU Brasil, que está disponível como PDF em nosso site.

Abaixo, listamos algumas das análises:

1. As recomendações 35, 224, 225, 228, 242 e 243, sobre medidas de prevenção e punição ao racismo, discriminação e violência contra os povos indígenas e conscientização sobre igualdade étnica e racial, não foram cumpridas.

O preconceito e a discriminação praticados pelo governo Bolsonaro também pode ser apontado quando se extinguiu, por meio de decreto, todos os colegiados ligados à administração pública federal criados por decreto ou ato normativo inferior, atingindo praticamente todos os espaços de participação civil relacionados às políticas indigenistas, entre eles o Conselho Nacional de Política Indigenista, Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.

Registre-se, ainda, a não implementação e paralisação de programas educacionais que visavam tratamento adequado à contribuição dos povos indígenas e populações negras no currículo escolar em atendimento à lei que incluía no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Leia mais na reportagem “Brazil shows no progress in response to U.N. calls on Indigenous rights”, da Mongaby

2. As recomendações 218, 222, 235 e 241, que versam sobre promoção da saúde indígena, mortalidade infantil, alimentação e saneamento nas aldeias, bem como de promoção da educação intercultural não foram cumpridas.

Não se registrou nos últimos anos nenhuma política específica para os povos indígenas. O que se verificou foi o enfraquecimento das políticas existentes juntamente com o desmonte de órgãos que deveriam implementá-las, com diminuição de orçamento e programas federais. Um exemplo foi a reestruturação do programa Mais Médicos, resultando na perda de 81% do quadro de médicos que atuam nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.

3. As recomendações 102, 223, 227, 230, 234, 236, 237, 238 e 239, que tratam da proteção dos direitos territoriais dos povos indígenas, particularmente de processos de demarcação de terras, da garantia de recursos financeiros para a Funai e da melhor articulação desta com o Ibama, não foram cumpridas, havendo evidente retrocesso no cumprimento de seu dever constitucional de proteger os direitos e territórios indígenas.

A Funai opera, atualmente, com um terço de sua força de trabalho, situação agravada pelo contingenciamento de 90% de seu orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual de 2019. A falta de funcionários atinge, especialmente, os setores que atuam in loco no combate a violações de direitos indígenas.

4. A recomendação 55, que trata da política climática e redução do desmatamento na Amazônia, não está sendo cumprida e evidencia retrocesso.

O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), de 2004, tinha como objetivo reduzir, de forma contínua, o desmatamento e criar as condições para a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia Legal. O PPCDAm foi paralisado em 2019. Após dois anos de desmonte das políticas ambientais e sem qualquer ação de controle de desmatamento, o governo lançou, em abril de 2021, o Plano 2021/2022 para a Amazônia. A meta de desmatamento são 122% maior do que a meta climática com a qual o país havia se comprometido em 2015 na Política Nacional de Mudança do Clima para 2020. 

5. As recomendações 229, 231, 232, 233 e 240, que tratam da ampliação da participação democrática dos povos indígenas nos processos de tomada de decisões, indicando a necessidade de avançar na agenda do consentimento livre, prévio e informado e assegurando um processo efetivo de consulta aos povos indígenas em todas as tomadas de decisões que possam afetá-los, assim como participação integral em todas as medidas legislativas e administrativas que os afetem não estão sendo cumpridas, em clara violação a esse direito.

Entre as decisões mais graves adotadas unilateralmente pelo governo sobre direitos de povos indígenas está a Instrução Normativa Conjunta no. 01/202,  da Funai e do  Ibama sobre normas para o licenciamento ambiental de projetos e atividades potencialmente poluidoras e de significativo impacto ambiental em terras indígenas. Adicionalmente, no Congresso Nacional tramitam inúmeras proposições de leis que tratam diretamente sobre direitos indígenas como o Projeto de Lei 191 de 2020 e o Projeto de Lei 490 de 2007

O Estado Brasileiro não reconhece, de forma generalizada e equitativa, os protocolos de consulta prévia autônomos elaborados pelos povos indígenas e tribais indicando como devem ser consultados. Essa iniciativa contabiliza mais de 60 protocolos autônomos já publicados, conta com reconhecimento de órgãos das Nações Unidas e do sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos, como a melhor estratégia para efetivação deste direito.

Seminário reúne indígenas e organizações para debater os 10 anos da PNGATI

Encontro com lideranças e organizações indígenas e indigenistas aconteceu em Brasília e debateu a importância da retomada e implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)

Texto: Lucas Gomes| 10 de junho de 2022

Entre os dias 7 e 9 de junho, mais de 50 organizações indígenas e indigenistas, entre elas a RCA e o Iepé, estiveram reunidas em Brasília para avaliar a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) desde a sua instituição, em 2012, e propor iniciativas para a retomada da sua implementação pelo Estado brasileiro.

O seminário, que marcou os 10 anos da criação da PNGATI, ocorreu num contexto de paralisação e desmonte não só desta política, mas também de outras políticas ambientais e indigenistas e de interrupção dos processos de reconhecimento das Terras Indígenas no país, o que tem fragilizado a proteção e sustentabilidade dos territórios indígenas e contribuído para o aumento das invasões, desmatamento e práticas ilícitas nas Terras Indígenas.

Instituída no dia 05 de junho de 2021, no Dia Mundial do Meio Ambiente, a PNGATI foi a primeira política indigenista construída de modo participativo no país após uma série de consultas, que envolveu mais de 1.200 representantes indígenas. Ela contou com um Comitê Gestor, constituído por lideranças indígenas e gestores governamentais de diferentes ministérios, até 2019, quando foi extinto pelo governo Bolsonaro, em ato que extinguiu diversos colegiados e comitês de participação e controle social de políticas públicas.

O seminário sobre os 10 anos de instituição da PNGATI reuniu mais de 50 organizações e lideranças em Brasília.

O evento foi organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em articulação com organizações indigenistas e ambientalistas, entre elas o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto Socioambiental (ISA) Operação Amazônia Nativa (OPAN), Comissão Pró Índio do Acre CPI-Acre, The Nature Conservancy Brasil (TNC), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), entre outras.

Durante dois dias (7 e 8 de junho), os mais de 100 participantes debateram as conquistas e impasses da implementação da Política, que seguiu orientando iniciativas indígenas de proteção territorial, manejo de recursos naturais, recuperação de áreas degradadas. Hoje mais de 150 terras indígenas no país contam com Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) elaborados e em implementação. Os participantes do seminário também discutiram propostas e ações prioritárias para sua retomada no próximo governo.

“A paralisação da implementação da PNGATI pelo governo Bolsonaro corre de modo orquestrado com iniciativas contrárias aos interesses indígenas no Congresso Nacional, com a proposição de várias iniciativas legislativas que visam desfigurar o arcabouço constitucional que reconhece o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios e o direito de todos a um meio ambiente sadio”, comenta Luis Donisete Benzi Grupioni, coordenador-executivo do Iepé, e secretário da Rede RCA.  

No documento final do seminário, os participantes apresentam quatro ações prioritárias para a retomada da implementação da PNGATI:

  1. Urgente  retomada do cumprimento do dever constitucional do Estado brasileiro com o reconhecimento e demarcação dos territórios indígenas, como medida fundamental para fazer frente à situação de insegurança, violação de direitos e exploração predatória de recursos naturais das Terras Indígenas, bem como a rejeição da tese do marco temporal e outras iniciativas legislativas que pretendem desconstruir direitos indígenas.
  • Retomada da PNGATI, com caráter de longo prazo, apoiada numa revisão e atualização de seu plano de implementação (PII-PNAGTI), com recursos específicos e aprovação do projeto de lei n. 4347/2021, de autoria da Deputada Joênia Wapichana (Rede/RR), que propõe a PNGATI como política do Estado brasileiro.
  • Reformulação e fortalecimento das instâncias de governança da PNGATI, com reorganização e fortalecimento de seu Comitê Gestor, monitoramento e avaliação de sua efetivação com mecanismos claros de controle social e cumprimento do dever do Estado brasileiro de consultar os povos indígenas e respeitar os protocolos autônomos de consulta e consentimento, sempre que medidas administrativas e legislativas possam impactar seus direitos e territórios
  • Financiamento governamental perene para a PNGATI, com recursos específicos no Plano Plurianual do Governo Federal (PPA), reativação do Fundo Amazônia com editais específicos para o fortalecimento da gestão territorial e ambiental das Terras Indígenas e retomada da parceria governamental com a cooperação internacional, e regulamentação do ICMS Ecológico contemplando como beneficiários as iniciativas indígenas locais de gestão territorial.
Lideranças indígenas falam sobre a implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental em suas comunidades.

Os participantes também salientaram a importância de dar seguimento às propostas de formação intercultural de agentes ambientais indígenas e de técnicos e gestores governamentais e afirmaram que as políticas estaduais de mudanças climáticas, programas de pagamento por serviços ambientais e financiamentos para a conservação da biodiversidade devem contemplar a repartição de benefícios com as comunidades indígenas, com salvaguardas elaboradas com a participação indígena, e financiamento para a gestão territorial das Terras Indígenas.

Audiência Pública na Câmara dos Deputados

No dia 9 de junho, os participantes do Seminário participaram de audiência pública conjunta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados para debater os avanços e desafios da implementação da PNGATI, quando apresentaram o documento final do seminário. A audiência foi coordenada pela Deputada Federal Joênia Wapichana, que colocou em debate o Projeto de Lei 4347/2021 de sua autoria, que institui a política de gestão em terras indígenas como política do Estado brasileiro.

Audiência pública sobre os avanços e desafios da implementação da PNGATI, que foi coordenada pela Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE/RR) e colocou em debate o projeto de lei de sua autoria para tornar a PNGATI uma lei.

Lideranças indígenas de diversas regiões do país discursaram na audiência, criticando a paralisação da PNGATI, denunciando iniciativas da Funai na contramão da sustentabilidade dos territórios indígenas bem como de iniciativas legislativas contrárias aos interesses indígenas, como o PL 191 que autoriza a mineração e o garimpo em Terras Indígenas e se manifestando em favor da aprovação do PL 4347.

“Na audiência lideranças indígenas afirmaram que seguirão atuando para a proteção de seus territórios e que não aceitarão propostas que visem abrir seus territórios para a exploração econômica, rejeitando as iniciativas de legalizar o garimpo e a mineração em suas terras. Manifestaram apoio incisivo pela aprovação do projeto apresentado pela Deputada Joênia Wapichana para transformar a PNGATI, criada por decreto, em lei. E, por diversas vezes, denunciaram o desmonte das políticas indigenistas por parte do governo Bolsonaro” resumiu Luis Donisete Grupioni.

>> Leia mais sobre os Planos de Gestão Ambiental e Territorial

A PNGATI E A INCIDÊNCIA LOCAL NA AGENDA CLIMÁTICA INTERNACIONAL

Depois de 10 anos, política de gestão de territórios indígenas consolida-se como potência para implementação de ações ligadas às mudanças climáticas. Retomada de espaços de articulação em seu escopo no Brasil é urgente.

Texto de Andreia Fanzeres/OPAN

Na semana em que se comemoram os 10 anos do decreto que instituiu a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), a mensagem sobre seu papel estratégico para o mundo rompe fronteiras por meio da participação de indígenas que estão na Conferência Interseccional sobre Clima de Bonn, na Alemanha (SB56). Com experiências locais para a gestão, luta por seus direitos e territórios, a delegação brasileira mostra em instâncias oficiais e paralelas da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) que, apesar dos compromissos insuficientes dos países na manutenção da temperatura média global abaixo de 1.5º C, os indígenas têm muito o que contribuir nas discussões que se esforçam para identificar ações de mitigação e adaptação no contexto do aquecimento do planeta.

Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Dadá Baniwa, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Yaiku Suya Tapayuna, da Associação Indígena Tapayuna (AIT) e Maurício Ye’Kwana, da Hutukara Associação Yanomami (HAY), foram para Bonn a convite da Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e da Operação Amazônia Nativa (OPAN). Perceberam que, embora sejam significativas as dificuldades de participação nesses espaços, como a barreira do idioma e a compreensão da dinâmica das negociações sobre clima em caminhos para incidência, é possível avançar na agenda de clima a partir do que em uma década a PNGATI conseguiu demonstrar.

Sineia Wapichana fala durante a 7ª reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da LCIPP, em Bonn. Foto: Patricia Zuppi/RCA .

“A PNGATI tem um eixo sobre mudança climática, além de tratar de direitos e da gestão dos territórios. Toda a discussão de clima, seja sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris [que trata sobre mercado de carbono], seja sobre agricultura, ou valorização dos conhecimentos tradicionais, tem a ver com a gestão do território também. Para fazer essa incidência em nível nacional e internacional é preciso trabalhar localmente”, considera Sineia Wapichana, ponto focal da RCA sobre clima no Brasil e ex-coordenadora da Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI. Este espaço foi diretamente atingido por um dos primeiros atos do atual governo, em 2019, que desmobilizou a participação social para implementação desta e de outras políticas ambientais no Brasil e, desde então, não pôde ser reativado.

Até a interrupção abrupta de seus trabalhos, o funcionamento da Câmara Técnica estava sendo fortalecido pelo movimento indígena e seus parceiros, promovendo iniciativas de capacitação para incidência sobre clima nacional e internacionalmente, além de alinhamento estratégico por mais ambição na implementação do Acordo de Paris. “Era uma experiência muito bem-sucedida, que infelizmente foi paralisada ainda no seu início, mas foi apresentada internacionalmente e inspirou o surgimento de espaços parecidos em outros países”, conta Patrícia Zuppi, da RCA.

As iniciativas de proteção territorial dos povos indígenas garantem a proteção de grandes extensões de floresta. Na imagem, vista área do território Paumari do Tapauá, no Amazonas. Foto: Adriano Gambarini/Gosto da Amazônia.

A Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI seria um espaço de ressonância e definição de posicionamento do Brasil dentro das pautas da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC (LCIPP, na sigla em inglês). Ela foi criada no escopo do Acordo de Paris, na COP21 (2015), mas só na COP24, em Katowice (2018) foi formado um Grupo de Trabalho Facilitador que está no seu segundo ciclo de implementação de atividades (2022-2024). É uma grande conquista do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudança Climática (conhecido como Caucus Indígena) na constituição de um órgão técnico oficial da UNFCCC, que pela primeira vez permite a participação paritária entre indígenas (ainda considerados observadores) e Estados (considerados Partes da Convenção do Clima), mas ainda busca estrutura para garantir o envolvimento das sete regiões socioculturais reconhecidas pela ONU.

“Os povos indígenas do Brasil estão criando mecanismos próprios para a gestão dos territórios, como planos de gestão territorial, além de seus planos de enfrentamento às mudanças climáticas e protocolos de consulta”, disse Sineia na 7ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP), em Bonn. Esses são instrumentos capazes de trazer concretude para as discussões climáticas que ocorrem tanto no Caucus Indígena como na Plataforma, a exemplo das pressões para que a implementação do Acordo de Paris adote uma abordagem baseada na garantia do respeito aos direitos humanos, o que ainda não se vê, por exemplo, na regulamentação do mercado de carbono.

Plenária de abertura da Conferência Interseccional sobre Clima de Bonn, na Alemanha. Foto: Patricia Zuppi/RCA

“Entendemos que vão chegar muitos recursos provenientes do mercado de carbono e fundos climáticos, mas não sabemos se as salvaguardas serão respeitadas e como isso vai acontecer em cada lugar. É o caso do Fundo Floresta+, que está chegando pelo Ministério do Meio Ambiente. Ele foi construído na pandemia, de forma remota, e há dificuldade para implementá-lo. A PNGATI tem tudo a ver com essa questão”, avalia. Um dos objetivos da Plataforma é também influenciar a formulação de políticas que encaminhem soluções para vários desafios, como a acessibilidade direta do financiamento climático pelos povos indígenas.

Calcada em três funções – promoção do conhecimento, capacidade de envolvimento e políticas/ações sobre mudanças climáticas –, a Plataforma depende da estruturação de sua capilaridade para lograr representatividade e levar até as mais altas instâncias de negociação sobre clima as contribuições dos povos, sejam denúncias sobre os impactos do clima e das políticas, sejam soluções baseadas no conhecimento tradicional e na abordagem de direitos humanos. Para saber como fazer isso, é preciso entender tecnicamente os espaços de incidência internacional sobre clima. “Já são anos acompanhando essa agenda internacional que tanto fala da importância do conhecimento tradicional dos povos. Agora precisamos fazer o caminho de volta para as comunidades”, afirma Sineia.

Durante expedições, indígenas Rikbaktsa, em Mato Grosso, realizam o mapeamento de locais importantes para a vivência de sua cultura. Foto: Ana Caroline de Lima/OPAN.

Bons exemplos da base

Desde 2008, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) realiza trabalhos de base com agentes ambientais e tem no currículo nada menos que o único plano indígena de enfrentamento a mudanças climáticas existente no Brasil até agora. Elaborou sete Planos de Gestão, quatro estão sendo finalizados e outros três encontram-se na fase de planejamento. Segundo Sineia, a ideia é assegurar que, em breve, todas as terras indígenas do estado tenham seus planos elaborados e implementados. “Os planos de gestão, ou planos de vida, estão na cabeça das pessoas. Temos que organizar isso num documento para fazer a discussão de dentro para fora”, considera. Os planos são, sobretudo, ferramentas de articulação das comunidades.

A PNGATI resistiu a esses primeiros 10 anos graças ao esforço da sociedade civil em implementá-la, até mesmo antes da assinatura de seu decreto, em 2012, quando já havia planos de gestão elaborados por povos indígenas no Acre, no Amapá, no Amazonas, em Mato Grosso e em outros estados. E, por conta do cuidado em seu processo de construção, segue fortalecida nas bases, como aponta Yaiku Suya Tapayuna. “Eu me lembro bem que a PNGATI é diferente das outras porque foi construída consultando nós, os povos indígenas”, lembra. Mais do que isso. Ela foi formulada a partir das experiências desses povos, algo inédito no país e que explica o grande apoio que tem tido das comunidades. “Embora sofra as consequências da falta de interesse do governo e precise de muito mais investimento para sua consolidação, como outras políticas socioambientais no Brasil, ao longo dessa década vemos que a PNGATI alcançou uma disseminação e se tornou bastante conhecida, pois lida com uma grande variedade de instrumentos de gestão que têm potencial para atender efetivamente às necessidades dos povos indígenas”, considera Gustavo Silveira, coordenador técnico da OPAN.

Na PNGATI cabem trabalhos de proteção territorial, essenciais para garantir que 80% da biodiversidade do planeta sigam sendo guardadas pelos povos indígenas no mundo, o que, por si só, é uma das mais relevantes contribuições para a manutenção do equilíbrio climático. Implementam-se ações de apoio à segurança alimentar, salvaguardas culturais, mitigação e adaptação a partir da valorização dos conhecimentos locais, como a formulação de redes e bancos de sementes e a ampliação das capacidades das brigadas indígenas.

Brigadas contra incêndio, como a dos Tenharim, do Sul do Amazonas, promovem a proteção dos territórios e o reflorestamento de áreas degradadas. Foto: Adriano Gambarini/OPAN.

Experimentam-se saídas para a geração de energia de forma mais sustentável, observam-se mais atentamente como as mulheres sentem as mudanças no clima em suas rotinas, na forma de se orientar e produzir no território. E esse ponto, em especial, precisa de mais atenção. “Ainda é preciso mais reconhecimento sobre a importância do papel das mulheres nessa discussão”, lembra Dadá Baniwa, coordenadora do Departamento das Mulheres Indígenas do Rio Negro (FOIRN/DMIRN). “Uma vez notamos que as mandiocas das roças na região da Serra da Lua, em Roraima, cozinharam debaixo da terra. Aí entra o trabalho dos agentes territoriais e ambientais indígenas. Eles fazem as discussões sobre clima e começam a investigar e solucionar esses desafios com base nos próprios saberes indígenas”, explica Sineia Wapichana, do CIR.

Nesse sentido, é fundamental haver sensibilidade para compreender de que maneira cada povo percebe e lida com os processos climáticos e buscar relacionar o que ocorre nessas bases com as decisões tomadas no nível global. Embora seja consagrado na terminologia das políticas sobre clima, “adaptação” não é a melhor forma de expressar o que fazem as comunidades em Roraima. “Em vez de discutir plano de adaptação à mudança climática, preferimos trabalhar com plano de enfrentamento no contexto da ‘transformação do tempo’. Desta maneira, conseguimos avançar”, completa.

Delegação brasileira na 7ª reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da LCIPP, em Bonn. Foto: Patrícia Zuppi/RCA.

Rede de Cooperação Amazônica

A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.