Governo não cumpre recomendação da ONU sobre Direitos Humanos

Relatórios mostram os retrocessos em direitos humanos e proteção ambiental. Documentos foram enviados ao 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal do Brasil, da ONU

Texto: Thaís Herrero | 30 de junho de 2022

No segundo semestre deste ano, o Brasil passará por mais uma rodada de avaliações por parte da Revisão Periódica Universal (RPU), da ONU. Em março, dezenas de organizações da sociedade civil enviaram seus relatórios de avaliação, entre elas estão a APIB, RCA e Iepé, que integram o  Coletivo RPU Brasil. Ao juntarmos e olharmos esses relatórios, ficam evidentes os retrocessos na agenda dos direitos humanos ao longo dos últimos anos.

Coletivo RPU Brasil, que reúne 31 organizações brasileiras que atuam junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e acompanham as revisões periódicas do Brasil, avaliou 242 recomendações feitas por países no 3o Ciclo do Brasil na RPU. Ao todo, 11 relatórios foram produzidos e enviados à ONU. 

As análises indicam a situação grave: quase metade (46%) de todas as recomendações, além de não terem sido postas em práticas, estão em retrocesso. Um terço (35%) estão em constante pendência.  Ou seja, ao somá-las, chegamos a 80% de recomendações descumpridas. Somente 17% das recomendações estão sendo implementadas parcialmente e apenas uma tem sido cumprida.

Obra Raízes da Humanidade, da artista Nat Grego, que ilustra a capa do relatório Relatório Povos Indígenas e Meio Ambiente. O documento foi preparado pelo Coletivo RPU Brasil.


Os relatórios retratam o enfraquecimento da capacidade das instituições públicas em servir à população do país. Em relação à comunidade internacional, indicam violações do Estado brasileiro em relação aos direitos socioeconômicos e ambientais.

Especificamente no caso dos povos indígenas, das 34 recomendações recebidas pelo Brasil no 3o Ciclo, nenhuma foi cumprida segundo análise dessas organizações. E a maioria está, inclusive, em retrocesso, como aquelas que dizem respeito a demarcação de terras indígenas, prevenção do racismo e discriminação, proteção de lideranças indígenas, obrigação de realizar consultas prévias. A análise é fruto do levantamento de nove relatórios apresentados por organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos sobre povos indígenas e meio ambiente para o 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Abaixo, resumimos alguns dos levantamentos do Relatório Povos Indígenas e Meio Ambiente, preparado pelo Coletivo RPU Brasil, que está disponível como PDF em nosso site.

Abaixo, listamos algumas das análises:

1. As recomendações 35, 224, 225, 228, 242 e 243, sobre medidas de prevenção e punição ao racismo, discriminação e violência contra os povos indígenas e conscientização sobre igualdade étnica e racial, não foram cumpridas.

O preconceito e a discriminação praticados pelo governo Bolsonaro também pode ser apontado quando se extinguiu, por meio de decreto, todos os colegiados ligados à administração pública federal criados por decreto ou ato normativo inferior, atingindo praticamente todos os espaços de participação civil relacionados às políticas indigenistas, entre eles o Conselho Nacional de Política Indigenista, Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.

Registre-se, ainda, a não implementação e paralisação de programas educacionais que visavam tratamento adequado à contribuição dos povos indígenas e populações negras no currículo escolar em atendimento à lei que incluía no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

Leia mais na reportagem “Brazil shows no progress in response to U.N. calls on Indigenous rights”, da Mongaby

2. As recomendações 218, 222, 235 e 241, que versam sobre promoção da saúde indígena, mortalidade infantil, alimentação e saneamento nas aldeias, bem como de promoção da educação intercultural não foram cumpridas.

Não se registrou nos últimos anos nenhuma política específica para os povos indígenas. O que se verificou foi o enfraquecimento das políticas existentes juntamente com o desmonte de órgãos que deveriam implementá-las, com diminuição de orçamento e programas federais. Um exemplo foi a reestruturação do programa Mais Médicos, resultando na perda de 81% do quadro de médicos que atuam nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.

3. As recomendações 102, 223, 227, 230, 234, 236, 237, 238 e 239, que tratam da proteção dos direitos territoriais dos povos indígenas, particularmente de processos de demarcação de terras, da garantia de recursos financeiros para a Funai e da melhor articulação desta com o Ibama, não foram cumpridas, havendo evidente retrocesso no cumprimento de seu dever constitucional de proteger os direitos e territórios indígenas.

A Funai opera, atualmente, com um terço de sua força de trabalho, situação agravada pelo contingenciamento de 90% de seu orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual de 2019. A falta de funcionários atinge, especialmente, os setores que atuam in loco no combate a violações de direitos indígenas.

4. A recomendação 55, que trata da política climática e redução do desmatamento na Amazônia, não está sendo cumprida e evidencia retrocesso.

O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), de 2004, tinha como objetivo reduzir, de forma contínua, o desmatamento e criar as condições para a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia Legal. O PPCDAm foi paralisado em 2019. Após dois anos de desmonte das políticas ambientais e sem qualquer ação de controle de desmatamento, o governo lançou, em abril de 2021, o Plano 2021/2022 para a Amazônia. A meta de desmatamento são 122% maior do que a meta climática com a qual o país havia se comprometido em 2015 na Política Nacional de Mudança do Clima para 2020. 

5. As recomendações 229, 231, 232, 233 e 240, que tratam da ampliação da participação democrática dos povos indígenas nos processos de tomada de decisões, indicando a necessidade de avançar na agenda do consentimento livre, prévio e informado e assegurando um processo efetivo de consulta aos povos indígenas em todas as tomadas de decisões que possam afetá-los, assim como participação integral em todas as medidas legislativas e administrativas que os afetem não estão sendo cumpridas, em clara violação a esse direito.

Entre as decisões mais graves adotadas unilateralmente pelo governo sobre direitos de povos indígenas está a Instrução Normativa Conjunta no. 01/202,  da Funai e do  Ibama sobre normas para o licenciamento ambiental de projetos e atividades potencialmente poluidoras e de significativo impacto ambiental em terras indígenas. Adicionalmente, no Congresso Nacional tramitam inúmeras proposições de leis que tratam diretamente sobre direitos indígenas como o Projeto de Lei 191 de 2020 e o Projeto de Lei 490 de 2007

O Estado Brasileiro não reconhece, de forma generalizada e equitativa, os protocolos de consulta prévia autônomos elaborados pelos povos indígenas e tribais indicando como devem ser consultados. Essa iniciativa contabiliza mais de 60 protocolos autônomos já publicados, conta com reconhecimento de órgãos das Nações Unidas e do sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos, como a melhor estratégia para efetivação deste direito.

Seminário reúne indígenas e organizações para debater os 10 anos da PNGATI

Encontro com lideranças e organizações indígenas e indigenistas aconteceu em Brasília e debateu a importância da retomada e implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)

Texto: Lucas Gomes| 10 de junho de 2022

Entre os dias 7 e 9 de junho, mais de 50 organizações indígenas e indigenistas, entre elas a RCA e o Iepé, estiveram reunidas em Brasília para avaliar a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) desde a sua instituição, em 2012, e propor iniciativas para a retomada da sua implementação pelo Estado brasileiro.

O seminário, que marcou os 10 anos da criação da PNGATI, ocorreu num contexto de paralisação e desmonte não só desta política, mas também de outras políticas ambientais e indigenistas e de interrupção dos processos de reconhecimento das Terras Indígenas no país, o que tem fragilizado a proteção e sustentabilidade dos territórios indígenas e contribuído para o aumento das invasões, desmatamento e práticas ilícitas nas Terras Indígenas.

Instituída no dia 05 de junho de 2021, no Dia Mundial do Meio Ambiente, a PNGATI foi a primeira política indigenista construída de modo participativo no país após uma série de consultas, que envolveu mais de 1.200 representantes indígenas. Ela contou com um Comitê Gestor, constituído por lideranças indígenas e gestores governamentais de diferentes ministérios, até 2019, quando foi extinto pelo governo Bolsonaro, em ato que extinguiu diversos colegiados e comitês de participação e controle social de políticas públicas.

O seminário sobre os 10 anos de instituição da PNGATI reuniu mais de 50 organizações e lideranças em Brasília.

O evento foi organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em articulação com organizações indigenistas e ambientalistas, entre elas o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto Socioambiental (ISA) Operação Amazônia Nativa (OPAN), Comissão Pró Índio do Acre CPI-Acre, The Nature Conservancy Brasil (TNC), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), entre outras.

Durante dois dias (7 e 8 de junho), os mais de 100 participantes debateram as conquistas e impasses da implementação da Política, que seguiu orientando iniciativas indígenas de proteção territorial, manejo de recursos naturais, recuperação de áreas degradadas. Hoje mais de 150 terras indígenas no país contam com Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) elaborados e em implementação. Os participantes do seminário também discutiram propostas e ações prioritárias para sua retomada no próximo governo.

“A paralisação da implementação da PNGATI pelo governo Bolsonaro corre de modo orquestrado com iniciativas contrárias aos interesses indígenas no Congresso Nacional, com a proposição de várias iniciativas legislativas que visam desfigurar o arcabouço constitucional que reconhece o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios e o direito de todos a um meio ambiente sadio”, comenta Luis Donisete Benzi Grupioni, coordenador-executivo do Iepé, e secretário da Rede RCA.  

No documento final do seminário, os participantes apresentam quatro ações prioritárias para a retomada da implementação da PNGATI:

  1. Urgente  retomada do cumprimento do dever constitucional do Estado brasileiro com o reconhecimento e demarcação dos territórios indígenas, como medida fundamental para fazer frente à situação de insegurança, violação de direitos e exploração predatória de recursos naturais das Terras Indígenas, bem como a rejeição da tese do marco temporal e outras iniciativas legislativas que pretendem desconstruir direitos indígenas.
  • Retomada da PNGATI, com caráter de longo prazo, apoiada numa revisão e atualização de seu plano de implementação (PII-PNAGTI), com recursos específicos e aprovação do projeto de lei n. 4347/2021, de autoria da Deputada Joênia Wapichana (Rede/RR), que propõe a PNGATI como política do Estado brasileiro.
  • Reformulação e fortalecimento das instâncias de governança da PNGATI, com reorganização e fortalecimento de seu Comitê Gestor, monitoramento e avaliação de sua efetivação com mecanismos claros de controle social e cumprimento do dever do Estado brasileiro de consultar os povos indígenas e respeitar os protocolos autônomos de consulta e consentimento, sempre que medidas administrativas e legislativas possam impactar seus direitos e territórios
  • Financiamento governamental perene para a PNGATI, com recursos específicos no Plano Plurianual do Governo Federal (PPA), reativação do Fundo Amazônia com editais específicos para o fortalecimento da gestão territorial e ambiental das Terras Indígenas e retomada da parceria governamental com a cooperação internacional, e regulamentação do ICMS Ecológico contemplando como beneficiários as iniciativas indígenas locais de gestão territorial.
Lideranças indígenas falam sobre a implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental em suas comunidades.

Os participantes também salientaram a importância de dar seguimento às propostas de formação intercultural de agentes ambientais indígenas e de técnicos e gestores governamentais e afirmaram que as políticas estaduais de mudanças climáticas, programas de pagamento por serviços ambientais e financiamentos para a conservação da biodiversidade devem contemplar a repartição de benefícios com as comunidades indígenas, com salvaguardas elaboradas com a participação indígena, e financiamento para a gestão territorial das Terras Indígenas.

Audiência Pública na Câmara dos Deputados

No dia 9 de junho, os participantes do Seminário participaram de audiência pública conjunta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados para debater os avanços e desafios da implementação da PNGATI, quando apresentaram o documento final do seminário. A audiência foi coordenada pela Deputada Federal Joênia Wapichana, que colocou em debate o Projeto de Lei 4347/2021 de sua autoria, que institui a política de gestão em terras indígenas como política do Estado brasileiro.

Audiência pública sobre os avanços e desafios da implementação da PNGATI, que foi coordenada pela Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE/RR) e colocou em debate o projeto de lei de sua autoria para tornar a PNGATI uma lei.

Lideranças indígenas de diversas regiões do país discursaram na audiência, criticando a paralisação da PNGATI, denunciando iniciativas da Funai na contramão da sustentabilidade dos territórios indígenas bem como de iniciativas legislativas contrárias aos interesses indígenas, como o PL 191 que autoriza a mineração e o garimpo em Terras Indígenas e se manifestando em favor da aprovação do PL 4347.

“Na audiência lideranças indígenas afirmaram que seguirão atuando para a proteção de seus territórios e que não aceitarão propostas que visem abrir seus territórios para a exploração econômica, rejeitando as iniciativas de legalizar o garimpo e a mineração em suas terras. Manifestaram apoio incisivo pela aprovação do projeto apresentado pela Deputada Joênia Wapichana para transformar a PNGATI, criada por decreto, em lei. E, por diversas vezes, denunciaram o desmonte das políticas indigenistas por parte do governo Bolsonaro” resumiu Luis Donisete Grupioni.

>> Leia mais sobre os Planos de Gestão Ambiental e Territorial

A PNGATI E A INCIDÊNCIA LOCAL NA AGENDA CLIMÁTICA INTERNACIONAL

Depois de 10 anos, política de gestão de territórios indígenas consolida-se como potência para implementação de ações ligadas às mudanças climáticas. Retomada de espaços de articulação em seu escopo no Brasil é urgente.

Texto de Andreia Fanzeres/OPAN

Na semana em que se comemoram os 10 anos do decreto que instituiu a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), a mensagem sobre seu papel estratégico para o mundo rompe fronteiras por meio da participação de indígenas que estão na Conferência Interseccional sobre Clima de Bonn, na Alemanha (SB56). Com experiências locais para a gestão, luta por seus direitos e territórios, a delegação brasileira mostra em instâncias oficiais e paralelas da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) que, apesar dos compromissos insuficientes dos países na manutenção da temperatura média global abaixo de 1.5º C, os indígenas têm muito o que contribuir nas discussões que se esforçam para identificar ações de mitigação e adaptação no contexto do aquecimento do planeta.

Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Dadá Baniwa, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Yaiku Suya Tapayuna, da Associação Indígena Tapayuna (AIT) e Maurício Ye’Kwana, da Hutukara Associação Yanomami (HAY), foram para Bonn a convite da Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e da Operação Amazônia Nativa (OPAN). Perceberam que, embora sejam significativas as dificuldades de participação nesses espaços, como a barreira do idioma e a compreensão da dinâmica das negociações sobre clima em caminhos para incidência, é possível avançar na agenda de clima a partir do que em uma década a PNGATI conseguiu demonstrar.

Sineia Wapichana fala durante a 7ª reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da LCIPP, em Bonn. Foto: Patricia Zuppi/RCA .

“A PNGATI tem um eixo sobre mudança climática, além de tratar de direitos e da gestão dos territórios. Toda a discussão de clima, seja sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris [que trata sobre mercado de carbono], seja sobre agricultura, ou valorização dos conhecimentos tradicionais, tem a ver com a gestão do território também. Para fazer essa incidência em nível nacional e internacional é preciso trabalhar localmente”, considera Sineia Wapichana, ponto focal da RCA sobre clima no Brasil e ex-coordenadora da Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI. Este espaço foi diretamente atingido por um dos primeiros atos do atual governo, em 2019, que desmobilizou a participação social para implementação desta e de outras políticas ambientais no Brasil e, desde então, não pôde ser reativado.

Até a interrupção abrupta de seus trabalhos, o funcionamento da Câmara Técnica estava sendo fortalecido pelo movimento indígena e seus parceiros, promovendo iniciativas de capacitação para incidência sobre clima nacional e internacionalmente, além de alinhamento estratégico por mais ambição na implementação do Acordo de Paris. “Era uma experiência muito bem-sucedida, que infelizmente foi paralisada ainda no seu início, mas foi apresentada internacionalmente e inspirou o surgimento de espaços parecidos em outros países”, conta Patrícia Zuppi, da RCA.

As iniciativas de proteção territorial dos povos indígenas garantem a proteção de grandes extensões de floresta. Na imagem, vista área do território Paumari do Tapauá, no Amazonas. Foto: Adriano Gambarini/Gosto da Amazônia.

A Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI seria um espaço de ressonância e definição de posicionamento do Brasil dentro das pautas da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC (LCIPP, na sigla em inglês). Ela foi criada no escopo do Acordo de Paris, na COP21 (2015), mas só na COP24, em Katowice (2018) foi formado um Grupo de Trabalho Facilitador que está no seu segundo ciclo de implementação de atividades (2022-2024). É uma grande conquista do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudança Climática (conhecido como Caucus Indígena) na constituição de um órgão técnico oficial da UNFCCC, que pela primeira vez permite a participação paritária entre indígenas (ainda considerados observadores) e Estados (considerados Partes da Convenção do Clima), mas ainda busca estrutura para garantir o envolvimento das sete regiões socioculturais reconhecidas pela ONU.

“Os povos indígenas do Brasil estão criando mecanismos próprios para a gestão dos territórios, como planos de gestão territorial, além de seus planos de enfrentamento às mudanças climáticas e protocolos de consulta”, disse Sineia na 7ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP), em Bonn. Esses são instrumentos capazes de trazer concretude para as discussões climáticas que ocorrem tanto no Caucus Indígena como na Plataforma, a exemplo das pressões para que a implementação do Acordo de Paris adote uma abordagem baseada na garantia do respeito aos direitos humanos, o que ainda não se vê, por exemplo, na regulamentação do mercado de carbono.

Plenária de abertura da Conferência Interseccional sobre Clima de Bonn, na Alemanha. Foto: Patricia Zuppi/RCA

“Entendemos que vão chegar muitos recursos provenientes do mercado de carbono e fundos climáticos, mas não sabemos se as salvaguardas serão respeitadas e como isso vai acontecer em cada lugar. É o caso do Fundo Floresta+, que está chegando pelo Ministério do Meio Ambiente. Ele foi construído na pandemia, de forma remota, e há dificuldade para implementá-lo. A PNGATI tem tudo a ver com essa questão”, avalia. Um dos objetivos da Plataforma é também influenciar a formulação de políticas que encaminhem soluções para vários desafios, como a acessibilidade direta do financiamento climático pelos povos indígenas.

Calcada em três funções – promoção do conhecimento, capacidade de envolvimento e políticas/ações sobre mudanças climáticas –, a Plataforma depende da estruturação de sua capilaridade para lograr representatividade e levar até as mais altas instâncias de negociação sobre clima as contribuições dos povos, sejam denúncias sobre os impactos do clima e das políticas, sejam soluções baseadas no conhecimento tradicional e na abordagem de direitos humanos. Para saber como fazer isso, é preciso entender tecnicamente os espaços de incidência internacional sobre clima. “Já são anos acompanhando essa agenda internacional que tanto fala da importância do conhecimento tradicional dos povos. Agora precisamos fazer o caminho de volta para as comunidades”, afirma Sineia.

Durante expedições, indígenas Rikbaktsa, em Mato Grosso, realizam o mapeamento de locais importantes para a vivência de sua cultura. Foto: Ana Caroline de Lima/OPAN.

Bons exemplos da base

Desde 2008, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) realiza trabalhos de base com agentes ambientais e tem no currículo nada menos que o único plano indígena de enfrentamento a mudanças climáticas existente no Brasil até agora. Elaborou sete Planos de Gestão, quatro estão sendo finalizados e outros três encontram-se na fase de planejamento. Segundo Sineia, a ideia é assegurar que, em breve, todas as terras indígenas do estado tenham seus planos elaborados e implementados. “Os planos de gestão, ou planos de vida, estão na cabeça das pessoas. Temos que organizar isso num documento para fazer a discussão de dentro para fora”, considera. Os planos são, sobretudo, ferramentas de articulação das comunidades.

A PNGATI resistiu a esses primeiros 10 anos graças ao esforço da sociedade civil em implementá-la, até mesmo antes da assinatura de seu decreto, em 2012, quando já havia planos de gestão elaborados por povos indígenas no Acre, no Amapá, no Amazonas, em Mato Grosso e em outros estados. E, por conta do cuidado em seu processo de construção, segue fortalecida nas bases, como aponta Yaiku Suya Tapayuna. “Eu me lembro bem que a PNGATI é diferente das outras porque foi construída consultando nós, os povos indígenas”, lembra. Mais do que isso. Ela foi formulada a partir das experiências desses povos, algo inédito no país e que explica o grande apoio que tem tido das comunidades. “Embora sofra as consequências da falta de interesse do governo e precise de muito mais investimento para sua consolidação, como outras políticas socioambientais no Brasil, ao longo dessa década vemos que a PNGATI alcançou uma disseminação e se tornou bastante conhecida, pois lida com uma grande variedade de instrumentos de gestão que têm potencial para atender efetivamente às necessidades dos povos indígenas”, considera Gustavo Silveira, coordenador técnico da OPAN.

Na PNGATI cabem trabalhos de proteção territorial, essenciais para garantir que 80% da biodiversidade do planeta sigam sendo guardadas pelos povos indígenas no mundo, o que, por si só, é uma das mais relevantes contribuições para a manutenção do equilíbrio climático. Implementam-se ações de apoio à segurança alimentar, salvaguardas culturais, mitigação e adaptação a partir da valorização dos conhecimentos locais, como a formulação de redes e bancos de sementes e a ampliação das capacidades das brigadas indígenas.

Brigadas contra incêndio, como a dos Tenharim, do Sul do Amazonas, promovem a proteção dos territórios e o reflorestamento de áreas degradadas. Foto: Adriano Gambarini/OPAN.

Experimentam-se saídas para a geração de energia de forma mais sustentável, observam-se mais atentamente como as mulheres sentem as mudanças no clima em suas rotinas, na forma de se orientar e produzir no território. E esse ponto, em especial, precisa de mais atenção. “Ainda é preciso mais reconhecimento sobre a importância do papel das mulheres nessa discussão”, lembra Dadá Baniwa, coordenadora do Departamento das Mulheres Indígenas do Rio Negro (FOIRN/DMIRN). “Uma vez notamos que as mandiocas das roças na região da Serra da Lua, em Roraima, cozinharam debaixo da terra. Aí entra o trabalho dos agentes territoriais e ambientais indígenas. Eles fazem as discussões sobre clima e começam a investigar e solucionar esses desafios com base nos próprios saberes indígenas”, explica Sineia Wapichana, do CIR.

Nesse sentido, é fundamental haver sensibilidade para compreender de que maneira cada povo percebe e lida com os processos climáticos e buscar relacionar o que ocorre nessas bases com as decisões tomadas no nível global. Embora seja consagrado na terminologia das políticas sobre clima, “adaptação” não é a melhor forma de expressar o que fazem as comunidades em Roraima. “Em vez de discutir plano de adaptação à mudança climática, preferimos trabalhar com plano de enfrentamento no contexto da ‘transformação do tempo’. Desta maneira, conseguimos avançar”, completa.

Delegação brasileira na 7ª reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da LCIPP, em Bonn. Foto: Patrícia Zuppi/RCA.

Da amazônia para o mundo: Indígenas de cinco estados da Amazônia participam de seminário sobre incidência internacional sobre clima.

Texto de Andreia Fanzeres / OPAN

A imagem das atuais 197 flâmulas de países membros das Nações Unidas pertencentes à Convenção Quadro sobre Mudança Climática (UNFCCC, na sigla em inglês) suscitaram uma pergunta provocadora numa turma de indígenas reunida em São Paulo na última semana de maio. “Cadê a bandeira do meu povo?”. Afinal de contas, a última Conferência do Clima realizada na cidade escocesa de Glasgow (COP26) foi marcada não apenas por uma presença indígena maciça, mas também pelo reconhecimento público do papel central do modo de vida desses grupos e de seus territórios na garantia do equilíbrio climático global.

Apesar de recentes avanços, o caminho para que os povos indígenas no mundo adquiram um maior protagonismo nas negociações sobre clima ainda é desafiador. E para compreender as oportunidades de incidência internacional nove lideranças de cinco estados da Amazônia engajaram-se em um seminário promovido pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e pela Operação Amazônia Nativa (OPAN).

Num grupo pequeno, foi possível discutir sobre a crise climática e o regime jurídico internacional com a colaboração de Stela Hershmann, do Observatório do Clima (OC). Ela também situou os participantes sobre o que avançou e o que emperrou na última COP, apontando para os próximos passos do processo de negociação na Conferência de Bonn, chamada de etapa interseccional, que acontecerá na primeira semana de junho, na Alemanha.

“Para mim, foi muito importante entender o que significou essa ‘pedalada climática’[1] que o governo brasileiro fez na COP26”, disse Luene Karipuna. A ‘pedalada climática’ foi uma estratégia em que o Brasil prometeu compromissos climáticos supostamente mais ousados, mas que na prática representariam uma regressão na ambição das metas do país na Convenção do Clima, resultando numa emissão adicional de 400 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e) em relação à meta nacional anunciada em 2015 por Dilma Rousseff. “Infelizmente essa informação sobre a pedalada não chega para as comunidades”, comentou Luene.

Nove lideranças de cinco estados da Amazônia engajaram-se em um seminário promovido pela RCA e pela OPAN. Foto: Patrícia Zuppi/RCA

Como comunicadora indígena, a jovem lembrou a avalanche de fake news que aterrissam nos territórios e que cada vez mais é importante apostar nos mecanismos de cada povo na transmissão de conhecimento entre gerações para conseguir trabalhar tecnicamente a pauta de clima. “A gente passa informação através das nossas histórias, como falou nosso parente Tapayuna”.

Yaiku Suya Tapayuna, que participará pela primeira vez de uma Conferência da UNFCCC em junho, compartilhou com outros representantes indígenas do Acre, de Mato Grosso, do Amazonas, de Roraima e do Amapá a luta pelo reconhecimento de seu território ancestral. Contou também histórias dos mais antigos que têm a ver com o modo como os diversos povos indígenas se orientam pela natureza e percebem os sinais de que ela está mudando rapidamente. “Quando eu era criança, minha mãe dizia que era para eu não brincar de pegar as borboletas porque elas fazem um trabalho importante. Uma borboleta é leve e frágil, mas várias juntas constroem uma forquilha para segurar o céu e não o deixar cair na cabeça da gente. Mas hoje, tem bem menos borboletas do que antes”, relatou.

Para a experiente Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que há quase uma década acompanha de perto a agenda de clima internacional representando o Brasil, a compreensão sobre a ciência é a base para levar os povos indígenas a uma condição de paridade no debate sobre clima. “Se você não entende tecnicamente o que os cientistas estão dizendo, não é possível fazer um diálogo com o nosso conhecimento tradicional”, afirma.

Para ilustrar como essa relação entre as iniciativas locais interagem com a discussão climática global, o CIR foi convidado a expor sua experiência nos trabalhos ligados à mitigação e adaptação climática durante o seminário. “Temos que chegar até as bases e falar claro com elas. O aumento da temperatura e a luta para segurarmos o aquecimento a 1,5 grau e meio acima dos níveis pré-industriais nada mais é do que cuidarmos da febre da Terra. Temos que combater isso”, exemplifica a jovem advogada do CIR, Jessica Wapichana.

Ela e Sineia demonstraram, com diversos exemplos, que o segredo tem sido trabalhar arduamente na implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), que neste mês de junho completa 10 anos no Brasil, imprimindo nessas ações um enfoque estratégico na questão climática e lutando para que cada vez mais recursos do financiamento climático sirvam à implantação dos planos de gestão nas terras indígenas.

As iniciativas de apoio a bancos de sementes tradicionais, ao registro da perspectiva feminina sobre as mudanças climáticas, o investimento no trabalho das brigadas indígenas num ambiente mais quente e extremo e o programa de energia sustentável para comunidades de Roraima foram outros tantos exemplos de como os trabalhos locais se conectam diretamente com os temas discutidos nas altas esferas da UNFCCC, como a recém criada Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês). Esse espaço, que tem como pilares o apoio à troca e valorização de conhecimentos tradicionais, a construção de capacidades de envolvimento e a facilitação de políticas e ações sobre mudanças climáticas, será o foco de atenção do grupo de indígenas do Brasil na Conferência de Bonn.

Na preparação para acompanhar esse processo, os participantes do seminário revisaram algumas das recentes conquistas do movimento indígena internacional na consolidação de espaços de discussão e tomada de decisão no âmbito das Nações Unidas, aprimorando-os e tornando-os cada vez mais democráticos e efetivos. Além da plataforma, muito se falou sobre o Caucus Indígena, formado por representantes indígenas do mundo inteiro que discutem e implementam estratégias de participação ativa na UNFCCC. “O mais importante é fortalecer os povos indígenas com oportunidades de formação para estarmos mais nesses espaços de incidência”, avisa Sineia. Nesses espaços em que se discutem profunda e tecnicamente temas duros como financiamento climático, agenda de adaptação e outros, é preciso investir para incidir, como continua Sineia. “Ou você sabe ou vai ser engolido pelas agendas”.

De Mato Grosso, Eliane Xunakalo e Kaianaku Kamaiurá, assessoras da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) trouxeram bons casos sobre o que já sabem e o que ainda é lacuna para aprimorar a incidência na agenda de clima nacional e internacionalmente. Segundo Eliane, todo o processo de inserção dos indígenas de Mato Grosso no Programa Redd For Early Movers (REM-MT) ensinou sobre negociação dessa agenda mais técnica sobre clima. “Em Mato Grosso, o estado costuma definir uma meta e não conversa conosco para construir as políticas públicas, mas para atrair mercados verdes precisa dos povos indígenas”, relata. “A gente não participa das discussões sobre mercado de carbono. Precisamos aprender mais sobre isso, pois o que temos visto cada vez mais são esses cowboys do carbono pelas aldeias”, conta Kaianaku.

Para Eldo Shanenawa, da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), é preciso equilibrar o papel e os investimentos destinados aos povos indígenas para que sua contribuição ajude realmente a enfrentar o aquecimento do planeta. “Quem faz menos [pelo clima] ganha mais. Quem faz mais, ganha menos. Nós somos vida. E salvamos vida pela sabedoria, conhecimento, vivência e cultura”, diz Eldo. “Nosso desafio maior é tecer conjuntamente uma linha estratégica que parta das realidades, dos saberes, das necessidades e expectativas das comunidades e organizações de base da Amazônia, com ênfase no protagonismo indígena. É favorecer que suas vozes, iniciativas e alertas alcancem as instâncias de negociação e decisão sobre políticas, acordos e financiamentos internacionais de clima”, explica Patrícia Zuppi, da RCA.      

Organizações denunciam fechamento de espaços de participação a indígenas no Brasil

Pronunciamento da APIB, Iepé, RCA e Raça e Igualdade, enviado ao Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, tratou do desmantelamento de direitos fundamentais dos povos indígenas

21ª Sessão do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas (2022) / 25 de abril – 6 de maio

 A participação política da sociedade civil nas instituições públicas e nos espaços decisórios do poder é uma prerrogativa constitucional que vem sendo negligenciada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Hoje não há mais canais de diálogo entre os representantes dos povos indígenas e os diferentes órgãos governamentais.

É este cenário preocupante que foi denunciado pelo pronunciamento O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas do Brasil, enviado à ONU pelo Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, que tem o status consultivo no ECOSOC, com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e Instituto Internacional de Raça, Igualdade e Direitos Humanos. 

O documento foi enviado em razão do 21o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, que acontece entre os dias 26 de abril e 6 de maio em Nova Iorque, e reuniu diversos representantes de povos indígenas, da sociedade civil e dos Estados membros da ONU.

O pronunciamento destaca que o presidente desmantelou a arquitetura institucional dedicada à promoção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, enfraqueceu os órgãos da administração federal e cortou seus orçamentos. O resultado disso é o abandono de políticas governamentais que implementaram direitos em áreas como saúde, educação, cultura, ordenamento do território, proteção de terras indígenas.

>> Leia mais sobre os outros pronunciamentos enviados ao Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas

“Por decreto, o presidente extinguiu todos os conselhos e colegiados vinculados à administração pública federal, afetando praticamente todos os espaços de participação cidadã relacionados às políticas indigenistas. O Conselho Nacional de Política Indigenista, a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, a Comissão Gestora da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas e o Colegiado Setorial de Culturas Indígenas foram extintos e deixaram de funcionar. Não há mais espaços oficiais de diálogo com os povos indígenas”, diz um trecho.

Já em outro parágrafo, o pronunciamento lamenta o retrocesso pelo qual o nosso país passa e pontua que estão enfraquecidas ou até extintas políticas que, no passado, eram consideradas de ponta. Muitas delas foram construídas de forma participativa com representantes dos povos indígenas voltadas à gestão territorial e ambiental, a programas de educação escolar bilíngue e intercultural, a ações de promoção da cultura, a atenção primária à saúde indígena e à proteção de povos em contato recente e isolamento voluntário. “A extinção desses conselhos e colegiados faz parte de uma orientação governamental de restringir todas as formas de ativismo popular e participação social no país, reduzindo o espaço cívico no Brasil.”

“O governo do presidente Jair Bolsonaro declarou uma verdadeira guerra contra os povos indígenas, contra a integridade de seus territórios tradicionais e contra seus direitos constitucionais.”

“Contrário a qualquer forma de participação social e popular, o governo brasileiro restringe o exercício político da cidadania fechando espaços cívicos, afastando aqueles que poderiam monitorar e denunciar os abusos e retrocessos que ocorrem no país.”

Indígenas e sociedade civil denunciam à ONU ameaças a seus povos

Dadá Baniwa e Maurício Ye’kwana estão entre os líderes que enviaram pronunciamentos pedindo que a ONU cobre do governo brasileiro ações imediatas para proteger os povos indígenas

“O ouro do Brasil está banhado em sangue. Isso é fruto da ganância, das formas predatórias de desenvolvimento e dos retrocessos e ameaças que ocorrem hoje no Brasil em relação aos direitos constitucionais indígenas.” Esse é um trecho da declaração de Maria do Rosário Piloto Martins, conhecida como Dadá Baniwa, apresentada no 21o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, que acontece entre os dias 26 de abril e 6 de maio em Nova Iorque.

Dadá é coordenadora de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas de Rio Negro (FOIRN) e foi uma das muitas lideranças que chamaram a atenção da ONU para os retrocessos e ameaças aos direitos dos povos indígenas no Brasil diante do atual governo.

O Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, que tem o status consultivo junto ao ECOSOC, e a Rede de Cooperação Amazônica (RCA) apoiaram os pronunciamentos, junto a organizações parceiras. Além do que foi feito por Dadá, também destacamos a declaração de Maurício Tomé Rocha, da diretoria da HAY – Hutukara Associação Yanomami, membro do Povo Ye’kwana,  que vive na Terra Indígena Yanomami. 

Também se manifestaram em pronunciamento conjunto a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Instituto Raça e Igualdade e Direitos Humanos, que denunciaram, juntamente ao Iepé e à RCA, a extinção de espaços de participação social indígena nas políticas indigenistas, e a inexistência de canais de interlocução entre povos indígenas e órgãos federais, no pronunciamento “O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas do Brasil”. 

Outro tema levado para o Fórum Permanente da ONU foi o descumprimento da obrigação do Estado brasileiro em consultar povos e comunidades indígenas quando medidas administrativas e legislativas possam afetar seus modos de vida e seus direitos, no pronunciamento denominado “Pela efetivação do direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado no Brasil”. 

A seguir, detalhamos esses importantes documentos.

Violência contra as mulheres e crianças

Dadá fez questão de lembrar à ONU que na mesma semana em que a reunião acontecia, em Roraima, o povo Yanomami denunciava o estupro e assassinato de uma menina de 12 anos vítima da invasão de garimpeiros. “Nossos territórios clamam por socorro, pois estão sendo invadidos, violados, ameaçados pela mineração e pela exploração ilegal de seus recursos naturais”, afirmou.

“A resistência do governo à demarcação das terras indígenas, somada ao incentivo do Estado brasileiro a grupos criminosos de garimpeiros, grileiros e madeireiros na invasão de territórios tradicionais, enseja uma série de ataques diretos à vida de mulheres e meninas indígenas”, completou.

Em seu pronunciamento, Dadá também pediu que os ​​membros do Fórum Permanente, o Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas e o Relator Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas recomendem ao governo brasileiro:

 • Ações emergenciais para garantir a segurança das mulheres indígenas dentro e fora de suas comunidades;

• Medidas emergenciais para desintrusão e proteção de nossos territórios invadidos;

• Retorno às políticas de demarcação de terras indígenas para lidar com crimes perpetrados por garimpeiros, caçadores, madeireiros, pecuaristas e outros invasores;

• Garantir o cumprimento dos direitos constitucionais, incluindo o consentimento livre, prévio e informado;

• Promover a participação das mulheres indígenas nos processos de consulta e consentimento e o respeito aos protocolos autônomos de consulta desenvolvidos pelos povos indígenas.

Ações contra o garimpo ilegal

Maurício Ye’kwana também destacou em seu pronunciamento o avanço da invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. Apesar de estar no coração da floresta amazônica e ser uma das maiores Terras Indígenas demarcadas do mundo, a atividade ilegal teve um crescimento de 495% na região.

“Enquanto isso, tramitam no Congresso brasileiro projetos de lei, como o PL 191 e o PL 490, que pretendem legalizar o garimpo em Terras Indígenas e enfraquecer o grau de proteção aos direitos dos povos indígenas, reconhecidos constitucionalmente e internacionalmente. Se essas iniciativas legislativas prevalecerem, as graves violações de direitos humanos dos povos indígenas do Brasil apenas se farão agravar”, disse.

Ele solicitou ao Fórum das Nações Unidas que recomende ao governo brasileiro que conduza com celeridade investigações sobre organizações criminosas que atuam com a cadeia do ouro, promova a imediata retirada de invasores nos territórios indígenas, com operações periódicas de fiscalização, inutilize todo o maquinário flagrado e proteja as comunidades indígenas ameaçadas pelos invasores com suas atividades ilegais.


Direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado

Assinado pelo Iepé e pela RCA, a declaração Pela efetivação do direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado no Brasil, teve como objetivo destacar à ONU que o “Estado brasileiro segue descumprindo seu dever e violando o direito dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de participarem de decisões que afetem suas vidas e direitos”. 

Segundo o documento, diversas obras e empreendimentos seguem sendo planejadas e executadas sem a observância do direito de esses povos serem consultados, impedindo sua participação social em decisões que afetam seu futuro. 

“O dever de consulta tem sido visto como mera formalidade burocrática em processos de decisões já tomadas. Assim, estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas, linhas de transmissão, atividades minerárias e outros são licenciados e construídos sem nenhum tipo de consulta a povos indígenas afetados, mesmo nos casos em que o projeto é implementado dentro das terras indígenas. É o caso do projeto de lei 191/2020 que pretende regulamentar a mineração em Terras Indígenas, apresentado pelo Governo brasileiro ao parlamento, sem consulta aos povos indígenas.”

No pronunciamento, as organizações salientaram que os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, exercendo a  autonomia e autodeterminação a que tem direito, estão elaborando seus próprios protocolos de consulta e consentimento. Esses são instrumentos inovadores, em que esses povos expressam sua boa fé para o diálogo com o governo. Neles, explicitam ao governo o tempo, as formas, os locais e as pessoas certas que devem ser acionadas para participarem de processos de Consulta Prévia, Livre e Informada.  O Brasil registra hoje mais de 60 Protocolos Autônomos elaborados. 

Ao final, o pronunciamento solicita que o Fórum Permanente para Assuntos Indígenas recomende ao governo brasileiro:

  • Reconhecer sua obrigação de consultar povos indígenas e comunidades tradicionais, e obter seu consentimento, conduzindo processos de consulta de boa fé, prévia e culturalmente adequada antes de tomar qualquer medida legislativa ou administrativa que possa afetá-los.
  • Reconhecer a livre determinação e a autonomia dos povos indígenas e sua disposição para o diálogo de boa fé com o Estado, respeitando seus Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado e seu caráter vinculante para os processos de consulta prévia.

>> Leia aqui a notícia sobre o documento “O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indígenas do Brasil 

RCA lança novo livro sobre Protocolos de Consulta durante o ATL 2022

Texto Lucas Gomes/RCA

A Rede de Cooperação Amazônica (RCA) lançou, no último dia 12 de abril, durante as atividades do Acampamento Terra Livre 2022 (ATL 2022) seu novo livro sobre Protocolos de Consulta Prévia.

Intitulado Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia, o livro resulta de um estudo comparativo sobre a iniciativa de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais destes quatro países em elaborarem protocolos de consulta e indicarem um caminho para o diálogo com os Estados Nacionais quando medidas administrativas e legislativas possam afetar seus direitos.

Num exercício de autodeterminação, esses povos sistematizaram regras, princípios e procedimentos relacionados ao modo como consideram adequados a realização de processos de consulta, visando a obtenção de seu consentimento.

O livro apresenta reflexões sobre os desafios presentes na elaboração e implementação de protocolos autônomos de consulta e consentimento prévio, livre e informado, para a efetivação de seu direito de participação em decisões públicas que lhes afetem diretamente.

O lançamento do livro ocorreu na Tenda da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT) no Acampamento Terra Livre (ATL) e contou com a participação de várias lideranças indígenas da Amazônia brasileira, numa grande roda de conversa em que puderam relatar experiências sobre a elaboração e utilização de seus protocolos de consulta, bem como sobre experiências negativas de empreendimentos que afetaram seus territórios sem que houvesse processos de consulta.

O lançamento do livro contou com a mediação de Biviany Garzón, coautora do livro e advogada do Instituto Socioambiental (ISA), e de Patricia Zuppi, assessora da secretaria executiva da RCA. Uma breve apresentação do conteúdo do livro foi feita por Biviany, que salientou que a proposta do livro era trazer experiências de vários países do continente americano que inspirassem outros povos indígenas do Brasil que ainda não elaboram seus próprios protocolos. Ela afirmou que os protocolos autônomos são um exercício do “direito a permanecer e a continuar a ser indígena, para poder fazer as suas escolhas do presente e do futuro”.

Em seguida foi aberta uma roda de conversa em que diferentes lideranças indígenas presentes no evento compartilharam as suas experiências na elaboração de protocolos de consulta e consentimento. Entre os povos que elaboraram em anos recentes seus próprios protocolos, falaram lideranças dos povos Wajãpi e Karipuna do Estado do Amapá, Ye’kwana da Terra Indígena Yanomami e Kaiabi, Suiá, Yawalapiti e Waurá da Terra Indígena do Xingu, no Estado de Mato Grosso.

O Agente Socioambiental Indígena Sakyry Waiãpi apresentando o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi
Amairé Kaiabi Suiá, Coordenadora de Território da ATIX Mulher, que participou dos debates no processo de construção do Protocolo do Xingu
Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, compartilha como foi a elaboração do Protocolo Yanomami e Yek’wana

Simbolicamente, o primeiro depoimento compartilhado foi de lideranças do povo Wajãpi, que foi o primeiro povo indígena do Brasil a elaborar, em 2014, seu protocolo de consulta.  As lideranças Wajãpi ressaltaram a importância que conferiu a realização deste protocolo no contexto de constantes ameaças e iniciativas governamentais que não consultam os povos indígenas e que agridem seu território. João Paulo Wajãpi, representante da coordenação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), explicou que o protocolo é necessário porque as propostas do governo podem “afetar o modo de vida dos Wajãpi”. O Agente Socioambiental Wajãpi, Sakyry Waiãpi, esclareceu que através de seu Protocolo os Wajãpi indicam como organizam seu sistema de governança e as formas de representação dos cinco subgrupos Wajãpi que vivem na Terra Indígena Wajãpi, no Amapá. De acordo com o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, um único cacique não pode responder por um processo de consulta que envolve seu território. Mas as consultas devem ser realizadas conforme as estruturas e etapas indicadas neste documento.

Já as lideranças do Xingu ressaltaram os desafios trazidos pela realização de um protocolo único que abrange um território no qual convivem 17 povos de línguas e etnias diferentes.  Um longo processo de reuniões locais foi realizado até que os povos do Xingu pudessem estabelecer diretrizes comuns indicadas em seu Protocolo para a realização de consultas no Território Indígena do Xingu.

Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, mencionou a importância jurídica de ter um protocolo de consulta prévia no contexto atual de ameaças, invasão e ataques de garimpeiros. Maurício, destacou, também, o caráter complexo que foi a realização de um protocolo de consulta prévia na maior terra indígena do país, a Terra Indígena Yanomami, com mais de 9.600.000 de hectares. Para enfrentar esses desafios e coordenar as ações e tomadas de decisão numa terra tão grande, o líder Ye’kwana explicou que foi criado o Fórum de Lideranças Indígenas Yanomami e Ye’kwana.

Luene Karipuna, representante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), explicou que o Protocolo de Consulta dos Povos do Oiapoque, reconhecido pelo Ministério Público Federal do Amapá, deixa claro que uma reunião isolada não pode ser considerada como consulta. O Protocolo foi elaborado conjuntamente pelos quatro povos que vivem nas Terras Indígenas da região e indica a necessidade de realização de um processo que envolve o diálogo e a criação de consensos através da participação ampliada das comunidades, organizações indígenas e do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO). Como exemplo de aplicação do Protocolo, Luene mencionou a situação atual de proposta de instalação do lixão do município de Oiapoque para as proximidades das Terras Indígenas, podendo afetar as cabeceiras dos três rios que banham seus territórios. O processo foi paralisado pelo MPF, exigindo a realização de um processo de consulta, de acordo com o Protocolo.

Amairé Kaiabi Suia, que é coordenadora de Território da ATIX Mulher e participou do processo de discussão e construção do Protocolo do Xingu, lembrou a relação entre protocolos de consulta e planos de gestão territorial e ambiental, dois instrumentos que contribuem para a gestão socioambiental de seus territórios.

Após as apresentações das lideranças de povos que já elaboraram seus Protocolos, representantes de outros povos participantes da roda de conversa, interessados pelo assunto, fizeram várias perguntas a respeito dos passos a seguir para a realização de seus próprios protocolos e dos desafios para implementá-los na prática.

Edilene Barbosa, representante da OPIAC, Biviany Garzon do ISA, coautora do livro, e Dalson Karipuna da APOIANP

A representante da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), Edilene Barbosa, falou da necessidade de instaurar um diálogo dentro da aldeia antes da aceitação de um projeto proposto pelo governo, mencionando que protocolos permitem entender com clareza tanto o lado positivo quanto negativo desses projetos, organizando a comunidade para discutir e tomar uma posição em conjunto perante o governo.

A roda de conversa foi concluída por Patricia Zuppi, que salientou a importância dessas conversas para a troca e compartilhamento de experiências e para fortalecimento das iniciativas indígenas de autonomia e gestão territorial.

Ianukula Kaiabi Suia (ao centro), presidente da ATIX, com representantes do Xingu que participaram do lançamento do livro

Clique aqui para acessar a versão digital do livro Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia, publicado pela RCA em 2022. O livro é de autoria de Priscylla Joca, Biviany Rojas Garzón, Liana Lima da Silva, Rodrigo Magalhães de Oliveira e Luís Donisete Benzi Grupioni. Com capa de Silia Moan e Arte de Renata Alves.

Nova publicação da RCA sobre Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: reflexões sobre os protocolos de consulta em quatro países

Experiências no Brasil, Belize, Canadá e Colômbia dão subsídios à análise dos avanços na criação e implementação dos documentos, cruciais a povos indígenas e tribais

Texto: Thaís Herrero

Desde 2014, povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais têm construído seus Protocolos Autônomos, que são hoje cruciais para que se coloquem como agentes na defesa de seus direitos sobre decisões de governos e empresas que afetam diretamente seus modos de vida e territórios.

É sobre isso e sobre as reflexões, desafios e lições relacionados à elaboração e implementação dos protocolos que trata o novo livro da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), chamado Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia”.

A publicação reúne exemplos dos quatro países e foi elaborada a partir de pesquisa bibliográfica e documental de Priscylla Joca, Biviany Rojas Garzón, Liana Lima da Silva, Rodrigo Magalhães de Oliveira e Luis Donisete Benzi Grupioni. No total, foram analisados 23 protocolos do Brasil, 7 do Canadá, 5 da Colômbia e 1 de Belize.

Os protocolos são uma manifestação da autodeterminação dos povos, que sistematizam normas, regras, princípios e procedimentos relacionados ao modo como cada um considera adequada, oportuna, honesta e respeitosa a realização da consulta por parte de empresas e governos, até a obtenção de seu consentimento.

Os quatro países foram escolhidos devido ao número de protocolos, a diversidade de sistemas jurídicos, de normas e grau de implementação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. Além disso, esses países estão localizados no Norte e no Sul globais e possuem contextos sociais, políticos e econômicos diferentes, permitindo a reflexão sobre a produção e implementação dos protocolos em distintas realidades geopolíticas.

No Brasil, foram os povos Wajãpi, no Amapá, e Munduruku, no Pará, que iniciaram a construção dos seus Protocolos Autônomos, sendo seguidos por uma série de iniciativas de  outros povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Até hoje, contabilizamos cerca de 60 Protocolos Autônomos de povos e comunidades tradicionais em nosso país. 

“Nós resolvemos fazer este documento porque muitas vezes vemos que o governo quer fazer coisas para os Wajãpi, mas não pergunta para nós o que é que estamos precisando e querendo. Outras vezes o governo faz coisas no entorno da Terra Wajãpi que afetam nossos direitos, mas também não pergunta nossa opinião. (…) Nós achamos que o governo deve escutar nossas preocupações, ouvindo nossas prioridades e nossas opiniões antes de fazer o seu planejamento. Não achamos bom quando o governo chega com projetos prontos para nós, com dinheiro para gastar em coisas que não são nossas prioridades.”

Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, 2014

Se de um lado vemos os esforços para a implementação dos acordos, por outro, também vivenciamos um período de retrocessos nos direitos socioambientais e ataques aos direitos constitucionais desses povos. “Diante desse cenário, nada favorável aos direitos humanos, os protocolos surgem justamente como um movimento dos próprios povos que reivindicam respeito a suas normas e regras internas e sua organização social própria”, diz Luis Donisete Grupioni, secretário executivo da RCA e coordenador executivo do Instituto Iepé e um dos autores do livro. 

“Eles passam a apresentar ao Estado um instrumento jurídico que reforça a re-existência nos seus territórios. É uma forma de reagir à invisibilidade política e jurídica que recai sobre os povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Tal como tem sido elaborados, os protocolos são uma manifestação de boa fé destes povos para com o Estado, propondo uma caminho efetivo para o diálogo intercultural, necessário quando o Estado pretende realizar algum empreendimento em seus territórios, além de um exercício importante de autodeterminação e autonomia política”, completa.  

Convenção 169 sob a mira dos retrocessos 

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais é o tratado de maior importância para esses povos por romper e superar o paradigma assimilacionista até então vigente. Ela consolida os direitos coletivos de autodeterminação e autorreconhecimento, direitos territoriais, direitos de participação e direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. 

Ainda assim, a atual corrente de retrocessos, não deixou a Convenção 169 de fora. Em 2021, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 177/2021), na contramão dos compromissos internacionais que o país assumiu, ameaçou denunciar a Convenção 169. Esse livro pode, no entanto, jogar luz à importância de se estabelecer e implementar processos de consulta, assim como efetivar o compromisso do Estado brasileiro em  consultar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais quando medidas administrativas possam impactar seus territórios e seus direitos. 

>>Leia mais: Em busca do bem-viver: como os indígenas estão fazendo seus planos de gestão territorial

No livro, os autores analisam as propostas de regulamentação do direito à consulta no Brasil e mostram como os protocolos de consulta são uma alternativa eficaz à uma regulamentação restritiva, evidenciando que o direito à consulta, como direito fundamental, é autoaplicável.

Ferramenta para novos protocolos

Outro objetivo da publicação é fornecer elementos e subsídios para povos e comunidades interessados em elaborar seus Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento no Brasil e para organizações que possam assessorá-los nesse processo. Também oferece informações aos países e interessados em demandar processos de consulta e consentimento livre, prévio e informado junto a povos indígenas e tribais de maneira adequada, oportuna, respeitosa, honesta e de boa-fé. 

“Este livro nos leva a refletir que a elaboração dos protocolos de consulta se constitui em processos ricos de diálogos, negociações e aprendizagens internas realizados pelos povos e comunidades  que decidem desenvolver um protocolo autônomo”, afirma Priscylla Joca, que também escreveu no livro e é doutoranda em Direito na Universidade de Montreal (Canadá).

Pryscilla destaca que, durante a elaboração dos protocolos, povos e comunidades se apropriam do conteúdo do direito à consulta e ao consentimento enunciado em normas nacionais e internacionais e interpretam essas normas a partir de suas próprias tradições sociais e culturais, de seus direitos próprios e de suas instituições políticas. Assim, ressignificam e reafirmam normas e acordos sociopolíticos internos a fim de fortalecer-se coletivamente. 

“Ao final, os protocolos são o resultado desses processos interculturais e jusdiversos e são apresentados para o Estado e outros atores interessados como um instrumento de afirmação da autodeterminação. Assim, o processo de constituição e desenvolvimento de um protocolo autônomo, ou as discussões sobre normas e procedimentos internos de consulta e consentimento, faz-se essencial para a posterior realização de uma consulta adequada e significativa,” explica.

Baixa baixar a publicação:

Rede de Cooperação Amazônica

A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.