“Em meio a celebração dos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro, o Diário Oficial da União estampava, na manhã do dia 11 de abril de 2019, o decreto presidencial nº 9.759 que extinguia e limitava colegiados da administração pública federal. A partir de 28 de junho daquele ano, estavam extintos todos os ‘conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra denominação dada ao colegiado’ no âmbito da administração federal”.
Essa passagem do livro “Em Defesa do Espaço Cívico – Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas” explica tanto sobre o contexto em que o livro foi gerado quanto a importância que ele fosse escrito. Publicado em julho pela RCA (Rede de Cooperação Amazônica), o livro fala sobre a importância dos espaços cívicos em geral para a democracia, e mais especificamente a importância desses espaços de participação social para a condução da política indigenista do Estado brasileiro em anos recentes.
Mas do que estamos falando quando falamos de espaços cívicos?
Segundo Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé, o espaço cívico é “a esfera pública onde cidadãos se organizam, debatem e agem para influenciar opiniões e políticas públicas. O espaço cívico pode ser definido como a camada situada entre o Estado, os negócios e a família, na qual os cidadãos se organizam, debatem e agem. Um espaço cívico saudável e aberto implica que grupos e indivíduos da sociedade civil sejam capazes de se organizar, participar e se comunicar sem impedimentos – e, ao fazê-lo, possam acessar informações, reivindicar seus direitos e influenciar a opinião pública, as políticas públicas e as estruturas políticas e sociais ao seu redor”.
Quando falamos de participação social e de espaços cívicos, falamos de organizações não governamentais, igrejas, sindicatos, movimentos sociais, jornalistas.
A democracia fica essencialmente menos democrática quando os espaços cívicos são extintos – seja de uma tacada só com uma assinatura, ou pouco a pouco, com o desmonte gradual das suas estruturas.
O livro em si é produto de uma época de transição: os textos foram escritos entre 2022 e 2023, justamente o último ano de Bolsonaro e o primeiro de Lula, que na primeira semana de seu mandato, assinou o decreto nº 11.371. O decreto “revogou a extinção dos colegiados da administração pública federal, condição indispensável para a recomposição do espaço cívico e da participação social nas políticas do Estado brasileiro. Vale registrar que o governo de transição contou com a participação de representantes de mais de 60 organizações da sociedade civil e de movimentos sociais, que além de fazerem propostas para o plano do novo governo, formularam as diretrizes para a revogação de uma série de atos de Bolsonaro, entre eles o decreto no 9.759”, escreve o antropólogo Luis Donisete Benzi Grupioni, na apresentação do livro.
Controle Social e participação indígena
O livro é composto por sete artigos, além do texto introdutório, abordando os principais colegiados criados junto às políticas públicas indigenistas, esclarecendo quando foram criados, como eram compostos, por quem, com que mandato e que impacto tiveram no desenho de programas e ações governamentais durante sua vigência e para a efetivação dos direitos indígenas.
O leitor encontrará informações sobre os conselhos e colegiados articulados à implementação da política de educação escolar indígena (Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena), de atendimento primário à saúde indígena (Conselho Distrital de Saúde Indígena), de gestão territorial (Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas), de cultura indígena (Colegiado Setorial de Culturas Indígenas), de articulação interinstitucional (Conselho Nacional de Política Indigenista) que, por assim dizer, formavam o núcleo duro da política indigenista brasileira. Também encontrará informações sobre a participação indígena nos mecanismos de proteção e acesso ao patrimônio genético e a recursos oriundos do Fundo Amazônia.
“Avalio que a grande contribuição deste livro é mostrar que o fechamento de espaços de participação e controle social indígena implica na regressão de políticas públicas e, consequentemente, na não efetivação dos direitos indígenas, e afirmar que não é concebível que políticas públicas sejam formuladas e implementadas sem contar com a contribuição dos principais interessados nelas”, afirmou Luis Donisete Grupioni, organizador do livro.
O livro “Em Defesa do Espaço Cívico – Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas” é uma realização da RCA e do Iepé, e contou com o apoio do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos; Rainforest Foundation Norway e Ford Foundation.
Delegação da Rede de Cooperação Amazônica contou com duas mulheres indígenas que levaram até Genebra denúncias sobre mineração ilegal e a pauta LGBTQIAP+
Texto: Comunicação Iepé
Palácio das Nações, ONU, em Genebra/Suíça (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
Na segunda quinzena de julho aconteceu a 16ª Sessão do Mecanismo de Peritos em Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas – EMRIP. Realizado em Genebra, na Suíça, o encontro contou com a participação de uma delegação do RCA (Rede de Cooperação Amazônica), formada por quatro integrantes:
Elizangela Baré, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro)
Lilia Karipuna, da AMIM (Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão)
Luis Donisete Benzi Grupioni (Iepé/RCA)
Patrícia de Almeida Zuppi (RCA)
Delegação do RCA e Race & Equality durante o 16º EMRIP (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
A delegação acompanhou os trabalhos ao longo da semana, inscreveu falas e pronunciamentos orais, e manteve uma extensa agenda de reuniões bilaterais com diversos mecanismos e procedimentos especiais (Alto Comissariado da ONU para o Brasil, Relatoria Especial da ONU para Água e Saneamento, Comitê para Eliminação da Discriminação contra a Mulher, Relatoria Especial para o Meio Ambiente, Relatoria Especial para Mudanças Climáticas, Relatoria Especial para Alimentação e Relatoria Especial para Povos Indígenas). A delegação também teve reunião com o Ministro Conselheiro da Missão Permanente do Brasil na ONU.
Elizangela Baré e Lilia Karipuna levaram importantes pautas indígenas para Genebra (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
Nessas reuniões bilaterais, a delegação apresentou um panorama da situação atual dos povos indígenas na Amazônia brasileira, com destaque para os impactos percebidos na qualidade da água dos rios nos territórios indígenas decorrentes da contaminação pelo garimpo ilegal e pela falta de saneamento em municípios no entorno. As lideranças indígenas alertaram para os efeitos causados na saúde das crianças e na segurança alimentar.
O Secretário Executivo da RCA, entregou o Relatório produzido pelo Iepé sobre o estudo realizado junto à Fiocruz relativo ao mercúrio identificado nos peixes dos rios do Amapá e norte do Pará.
Eventos paralelos: quando as discussões se aprofundam
Além do evento principal, a programação do EMRIP inclui diversos eventos paralelos. Nesta edição do EMRIP, a RCA e o Iepé, em parceria com outras organizações, realizaram um evento paralelo com o tema “Iniciativas Indígenas de Proteção Territorial na Amazônia Ameaçada”.
Evento paralelo organizado pela delegação da RCA e Iepé (Foto: Leonor Hernández/Associação para os Povos Ameaçados)
No evento, os participantes destacaram as crescentes ameaças aos territórios indígenas, como invasões, desmatamento, extrativismo, garimpo ilegal, monoculturas e grandes empreendimentos no entorno de suas áreas, bem como a crescente tomada da região por cartéis de drogas e grupos paramilitares, que resultam em altíssimos impactos e riscos à segurança e à vida das comunidades indígenas, intensificados pelo desmonte das políticas ambientais e de proteção territorial nos últimos quatro anos no Brasil.
E apresentaram iniciativas autogestionadas para proteger seus territórios e bem-estar de suas comunidades, como as expedições de monitoramento dos limites dos territórios, o fortalecimento de organizações de base e a criação de coletivos voltados à proteção dos grupos mais vulneráveis. A elaboração e implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PGTAs) e os Protocolos Próprios de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado também foram destacados como instrumentos de governança e de regulação das relações com a sociedade envolvente.
Esse evento paralelo foi realizado pela RCA; AMIM; FOIRN; UNIVAJA (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari); Society for Threatened People (STP); com apoio do Iepé, Instituto Internacional Raça, Igualdade e Direitos Humanos; Fundação Ford e Rainforest Foundation Norway.
Luis Donisete e Lilia Karipuna durante evento paralelo do 16º EMRIP (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
Os eventos paralelos fazem parte da programação oficial: essa é uma oportunidade de ampliar o espaço de participação direta das lideranças indígenas durante a sessão e apresentar com mais profundidade as pautas consideradas prioritárias.
Desenvolvimento sim, mas não de qualquer maneira!
Durante o Encontro, Elizangela Baré, da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, realizou um importante discurso sobre mineração ilegal e os perigos que ela apresenta aos povos indígenas.
Destacamos abaixo alguns trechos de seu pronunciamento, feito diretamente do Palácio das Nações Unidas:
A mineração ilegal tem causado a crise humanitária em nossos territórios.
A mineração não é uma atividade tradicional dos povos indígenas e tem causado impactos gravíssimos, como a contaminação dos peixes, que são a base da nossa alimentação.
Nossas crianças e comunidades ficam doentes com a contaminação do peixe com mercúrio e isso afeta a pesca tradicional.
Com isso, o extrativismo ilegal traz prostituição, violência, alcoolismo, doenças externas aos territórios e põe em risco nossa segurança alimentar e práticas tradicionais.
Nosso potencial econômico não está na extração de minerais. É uma prática colonizadora.
Que o Estado brasileiro garanta a efetivação do direito à consulta prévia, livre e informada e reconheça para isso os próprios protocolos dos povos indígenas.
Desenvolvimento sim, não de qualquer maneira!
Elizângela Baré da FOIRN apresentando a declaração oral sobre os impactos da mineração ilegal nos territórios indígenas da Amazônia brasileira (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
Indígenas e a pauta LGBTQIAP+
Outro tópico abordado em Genebra foi a questão dos indígenas LGBTQIAP+. Lilia Ramos Oliveira, do povo Karipuna, é uma indígena lésbica e a primeira mulher indígena vereadora de Oiapoque-AP. Ela foi a Genebra como representante da Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão.
“Hoje, quando saímos do nosso território, nos deparamos com o preconceito nos espaços públicos da cidade. Dentro das universidades, a existência de estudantes LGBTQIA+ indígenas é frequentemente questionada”, afirma Lilia, que levou a Genebra 3 recomendações para o Estado brasileiro:
Promover a capacitação de lideranças indígenas LGBT sobre mecanismos de promoção e discussão de seus direitos, inclusive em nível internacional
Criar políticas públicas para prevenir a violência e o discurso de ódio contra os indígenas LGBT
Garantir o acesso à justiça e a punição dos agressores por atos de violência contra indígenas LGBT
“Os ataques contra os indígenas LGBTQIAP+ não se limitam ao discurso de ódio. Casos de graves ataques físicos e psicológicos, incluindo homicídios, foram relatados. Apesar disso, as denúncias apresentadas não se traduzem em justiça e a impunidade é a norma”, conclui Lilia.
Elizangela Baré e Lilia Karipuna na Plenária do 16ºEMRIP, Palácio das Nações (Foto: Patricia Zuppi/RCA)
Criado em 2007 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH), o EMRIP tem a missão de auxiliar os Estados Membros das Nações Unidas a cumprirem as metas da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O colegiado do EMRIP é composto por 7 especialistas independentes em Direitos Indígenas, nomeados pelo CDH.
O mecanismo se reúne na sede da ONU em Genebra uma vez por ano e conta com a participação de representantes do Estado, associações e federações de Povos Indígenas, sociedade civil, organizações intergovernamentais e academia.
Pela primeira vez como painelista numa atividade oficial da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC, Sineia Wapichana fala sobre o pioneirismo dos estudos de caso sobre mudanças climáticas nas terras indígenas de Roraima.
Andreia Fanzeres/OPAN
Sineia Wapichana, do CIR, no painel da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas na Conferência de Bonn, em junho de 2023. Foto: Ianukula Kaiabi Suia/ATIX
Foram necessárias nove reuniões do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) até que uma representante indígena do Brasil fosse convidada para compartilhar percepções e experiências de enfrentamento às mudanças climáticas. Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), fez história em Bonn em 2023, cidade alemã que ela conhece tão bem. Por quase uma década ela acompanha esta agenda na sede da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) para, depois, fazer todos os anos o difícil caminho de volta para as comunidades, trabalhando localmente aquilo que se busca alcançar globalmente.
O convite para participar na condição de detentora de conhecimentos indígenas na Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima foi consequência direta das informações prestadas pela delegação brasileira sobre a influência indígena na construção do Plano Nacional de Adaptação do Brasil.
No dia 1º de junho, Sineia reportou aos membros da Plataforma e observadores sobre os estudos de caso de mudanças climáticas em Roraima elaborados 10 anos atrás em apenas três minutos a ela concedidos na reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (9FWG). Somada aos esforços de participação dos indígenas brasileiros nas instâncias da Convenção do Clima nos últimos anos, tal contribuição foi considerada tão relevante que Sineia finalmente recebeu a proposta de explicar com mais tempo e detalhes o trabalho local que desenvolve no Departamento de Gestão Ambiental e Territorial do CIR.
Assim, no dia 7 de junho, em uma das duas atividades oficiais da Plataforma que aconteceram durante a Conferência SB58, que prepara o terreno para a COP28, Sineia fez uma apresentação de slides que, nas palavras do Secretariado da Plataforma, “deu exemplos concretos” do processo de elaboração de contribuições dos indígenas às políticas e ações climáticas.
Apresentação de Sineia Wapichana durante a Atividade 5 da LCIPP. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN
“Nós, povos indígenas, somos os primeiros a sentir os impactos do que pra nós é a transformação do tempo e isso nos impulsionou a fazer um trabalho na nossa região para mostrar como podemos construir nossos planos para enfrentar as mudanças climáticas, tanto para contribuir com as políticas públicas do Brasil como para trazer como exemplo a outros países”, explicou Sineia. Ela referia-se a “AmazadPana’adinhan: percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas – Região Serra da Lua/RR”, publicação pioneira e ainda única no país, que foi referência para o subcapítulo indígena do Plano Nacional de Adaptação, de 2016, instrumento da Política Nacional de Mudanças Climáticas.
“Para mostrar como as transformações do tempo estão nos afetando, fizemos estudos de caso para saber como estava nossa vida cultural, a pesca, a caça, a agricultura. Dentro dos nossos estudos vimos que os rios aqueceram, os peixes regionais não estavam mais lá. O canto dos pássaros que guiavam as colheitas e plantações não acontecem mais. Como podemos ter políticas para enfrentar esses problemas? Nos planos de enfretamento não estão apenas nossa percepção holística, mas as demandas que devem ser fortalecidas com recursos públicos para enfrentarmos as mudanças climáticas”, aponta.
Plano de enfrentamento às mudanças do clima elaborado pelo Conselho Indígena de Roraima que foi referência para o PNA do Brasil
De Roraima ao Juruena e ao Ártico
Conforme ilustrou Sineia, a rotina das mulheres e o trabalho com as crianças têm sido importantes e reveladores daquilo que é prioridade no enfrentamento às mudanças climáticas. Por isso, elas recebem atenção especial nos planos de enfrentamento e nas várias iniciativas locais de formação e discussão sobre clima liderados por Sineia em Roraima.
A ação das mulheres é protagonista em vários outros contextos dentro e fora do país. Dineva Kayabi (povo Kawaiwete), que também observou as várias intervenções de Sineia e de indígenas do mundo inteiro nas discussões sobre clima em Bonn, recorre a um outro exemplo de percepção e adaptação às transformações hoje mais facilmente percebidas no tempo. Conforme conta Dineva, os Kawaiwete do rio dos Peixes, que vivem na bacia do rio Juruena, em Mato Grosso, cultivam e utilizam cinco tipos diferentes de amendoim. Mas do ano passado para este as indígenas não puderam preparar chicha nem mingau, o que teve um efeito direto na nutrição das crianças e na renda das famílias. “No mês de setembro, dá na mata frutinha chamada ‘chimico’. Ela é usada no nosso calendário como indicador. É ela que diz pra gente quando é hora de plantar o amendoim. Mas em 2022 a chuva atrasou e pela primeira vez não deu para plantar”, disse Dineva. Segundo ela, as sementes de amendoim ficaram guardadas em garrafas e sacos para que não se perdessem e, este ano, a expectativa é de que elas possam finalmente germinar.
O conhecimento tradicional indígena é um modo sistemático de pensar, baseado em evidências, observações e experiências intergeracionais de longo prazo. Foi o que defendeu num emocionante discurso Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, ressaltando que não é preciso ter Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) nem Balanço Global para saber que o Ártico está mudando. “Nossa visão do futuro é enraizada pelo passado. A ciência indígena, o conhecimento coletivo, guardam muitas respostas. São milhares de anos de observação. Nomeamos cada pedaço da costa, cada esquina de nossas terras. Nomear nosso território é uma forma de expressarmos nosso conhecimento. Esse tipo de observação nos permite inovar e prosperar no Ártico. Nós amamos nossa terra natal”, falou. “Antes dos cientistas, já estávamos falando de mudanças climáticas. E nós, Inuítes, queremos compartilhar esse conhecimento. Se protegermos o Ártico, protegeremos o planeta. Precisamos proteger a terra, a água, o nosso gelo. O respeito aos direitos indígenas é ação climática”, seguiu Lisa.
Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, na abertura da atividade 5 da LCIPP. Foto: arquivo pessoal/redes sociais
A UNFCCC hoje reconhece que povos indígenas e comunidades locais detém valores, perspectivas de mundo e práticas tradicionais que contribuem com os esforços coletivos de enfrentamento às mudanças climáticas e à construção de resiliência. Mas sua marca nas políticas climáticas locais, nacionais e internacionais ainda não são conhecidas nem tão visíveis. “Com pouquíssimas exceções, podemos dizer que os povos indígenas são invisíveis como detentores de direitos e de conhecimento. Nós somos representados pela ótica das vítimas, por sermos afetados e beneficiados por projetos. Mas essa é uma perspectiva muito limitada e que precisa ser mudada”, disse Lakpa Nuri Sherpa, um dos autores de um estudo que em 2022 analisou as metas climáticas de 10 países asiáticos (https://aippnet.org/indigenous-peoples-rights-in-ndcs-initial-observations-from-asia/).
Durante a apresentação em um evento paralelo dos resultados de um estudo desenvolvido pela rede Asia Indigenous Peoples Pact, que abrange 14 países, Sherpa ressaltou também a discriminação sistemática contra povos indígenas quando o assunto é seu envolvimento nas discussões e políticas climáticas e a importância do trabalho nas comunidades. “Mudança climática é uma palavra que não existe na maioria das línguas indígenas. É difícil de explicar. Os estudos que fazemos são importantes para discussão em espaços como este, mas têm que ser também úteis para as comunidades. O nível de atuação nacional e local são muito importantes, temos que estar lá”, reforça Sherpa, alinhando-se e reforçando a trajetória de luta e persistência de Sineia Wapichana, em Roraima.
“Precismos ter os direitos dos povos indígenas garantidos, com nossos conhecimentos somados aos científicos, para não só identificar a percepção, mas para encontrarmos saídas para diminuir o aquecimento do planeta. Os povos indígenas vêm contribuindo com seus saberes em todo o mundo. E eu trouxe essa experiência para dizer que é possível”, encerrou Sineia Wapichana, muito aplaudida.
A delegação indígena do Brasil na SB 58, em Bonn, teve o suporte da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
Clique aqui para assistir à apresentação de Sineia Wapichana e dos demais convidados da Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima, que ocorreu em Bonn no dia 7 de junho de 2023: https://unfccc.int/event/annual-training-workshop-for-parties-and-constituted-bodies-transforming-climate-action-through
Envolvido em escândalos, Sultan Ahmed Al Jaber recebe líderes indígenas em Bonn, na Alemanha, e diz que seus pleitos serão prioridade na Conferência do Clima.
Andréia Fanzeres/OPAN
Brasileiros participam da reunião do Caucus Indígena com o presidente da COP28. Foto: Patricia Zuppi/RCA
Representantes do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (Caucus Indígena) reuniram-se nesta quinta-feira, dia 8 de junho, com Sultan Ahmed Al Jaber, presidente da COP28. Alvo de protestos, envolvido em polêmicas sobre sua ligação com a indústria do petróleo e com a propensa falta de ambição no avanço das negociações, em especial sobre o fim da queima de combustíveis fósseis, Ahmed Al Jaber atendeu a um pedido do Caucus Indígena para uma conversa durante a Conferência SB58, em Bonn, na Alemanha. Os povos indígenas das sete regiões socioculturais reconhecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) exigiram condições adequadas de acessibilidade e participação na COP28, que será realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023 em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Lideranças indígenas do Brasil participaram da reunião, entre elas Dineva Kayabi, convidada a sentar-se na mesa principal pela co-presidente do Caucus Indígena, Hindou Ibrahim, ao lado de outros detentores de conhecimentos tradicionais e jovens indígenas. Ahmed Al Jaber ouviu de Hindou pedidos específicos, como para que na COP de Dubai haja garantido um pavilhão indígena, condições para diálogos de alto nível com as Partes da Convenção do Clima (Estados) e um dia dedicado aos povos indígenas na COP28, com foco no tema de Justiça de Transição Energética. Frisou, ainda, que os povos indígenas devem estar nos eventos mais importantes e decisivos.
Na primeira intervenção realizada por cada representante regional indígena, o jovem panamenho Onel Massardule, em nome da América Latina e Caribe, lembrou que em dois anos o Brasil deverá sediar uma COP e que, mais do que nunca, os brasileiros precisam ter o direito de participar da convenção usando seu próprio idioma. Isso não é assegurado hoje nos eventos da Convenção do Clima porque o português não é língua oficial da ONU e converge com um dos principais pleitos que há anos os representantes indígenas do Brasil vêm apresentando aos espaços oficiais da UNFCCC.
Os líderes expressaram preocupação com a disponibilidade e viabilidade de acomodações, emissão de vistos, em particular de indígenas da própria Ásia, região que ancora a COP neste ano. Também pautaram a importância da inclusão dos povos indígenas nas agendas estratégicas, como “Perdas e Danos”, argumentando que os impactos das mudanças climáticas ocorrem no nível local, afetando os territórios e povos, que devem ter acesso direto a fundos para lidar com esta finalidade. Os povos indígenas pediram que a Presidência da COP28 tenha responsabilidade moral e política para defender seu posicionamento.
A presidência da COP28 assegurou que a pauta indígena será prioritária. “Nós estamos trabalhando para dar uma resposta mais compreensiva e holística para a participação efetiva dos povos indígenas na COP28. Tenho certeza de que não vamos deixar ninguém para trás”, disse Ahmed Al Jaber.
Reunião da Presidência da COP28 com povos indígenas na sede da UNFCCC, em Bonn/Alemanha. Foto: Patricia Zuppi/RCA
A delegação indígena do Brasil em Bonn é composta por Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC), Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cassimiro Tapeba, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e membro do CIMC, Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Xingu (ATIX), Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliel Rondon (Fepoimt), Kaianaku Kamaiura (Coiab) e Dineva Maria Kayabi (Coiab e Rede Juruena Vivo) e tem apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção do Clima contempla propostas da delegação brasileira, avançando na superação dos desafios de inclusão.
Andreia Fanzeres/OPAN
IX Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Foto: Kaianaku Kamaiurá/COIAB
Em meio ao cenário a cada ano mais desafiador para reverter o descaminho que afasta a todos da meta mundial de limitar o aquecimento do planeta em 1.5ºC, os povos indígenas foram mais uma vez reconhecidos como lideranças globais para a sonhada transformação que levaria ao alcance das metas do Acordo de Paris, nos discursos de abertura da 9ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês), que tradicionalmente abre as atividades da Conferência do Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Técnico (SBSTA) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), em Bonn, na Alemanha.
“O conhecimento indígena é elemento crucial para enfrentar os desafios climáticos e sabemos que tratar a natureza como mercadoria não dá certo. A liderança dos povos indígenas é mais importante do que nunca”, afirmou Simon Stiel, secretário-executivo da UNFCCC.
Falar é fácil e, neste caso, este é o tom que se espera de quem tem o papel de desatar os nós de 197 países para reduzir as emissões drasticamente em menos de sete anos. Ainda assim, em se tratando do ritmo da diplomacia climática, e considerando o penoso percurso dos povos indígenas na construção de mecanismos de participação, o que acaba de acontecer em Bonn entre 31 de maio e 3 de junho de 2023 é um marco, especialmente para a delegação indígena brasileira. Ela não só teceu contribuições técnicas precisas ao trabalho da Plataforma, como as viu refletidas nas decisões e encaminhamentos feitos por esta instância, que é única em toda a estrutura da UNFCCC.
Em Sharm el-Sheikh, no Egito, os indígenas brasileiros reivindicarem melhores condições de transparência e inclusão na Plataforma, sobretudo quanto às dificuldades de tradução durante sua última reunião na COP27, uma vez que o português não é idioma oficial da UNFCCC. Este ano aconteceu algo bem diferente, a começar pela metodologia da própria reunião. Quatro trabalhos em grupo em quatro dias de reunião representaram, na prática, a confirmação de um modelo testado de modo ainda tímido no Egito para ampliar as possibilidades de participação dos observadores, indígenas e não indígenas, nas reuniões da Plataforma. O Brasil constituiu um grupo de falantes da língua portuguesa que, desta maneira, conseguiu aportar contribuições às agendas de Adaptação, Balanço Global, às atividades na COP28, em Dubai, e no novo Plano de Trabalho 2025-2027.
Sob a condução das recém eleitas co-presidentes da Plataforma, Gun-Britt Retter, representante dos povos indígenas do Ártico, e Tiana Carter, que também é indígena e atua em nome do Grupo de Países da Europa Ocidental e Outros (WEOG, na sigla em inglês), a reunião revisou os progressos em cada uma das atividades do Plano de Ação 2022-2024 da Plataforma, entre eles os que pretendem proporcionar maior engajamento dos povos indígenas e comunidades locais com os processos e instâncias da UNFCCC e também dos demais órgãos vinculados ou não à Convenção com a pauta indígena.
Harry Vreuls, presidente do SBSTA, disse que ficou impressionado com as contribuições dos povos indígenas para o tema de Adaptação durante o 5º Workshop sobre Adaptação do Programa de Trabalho da Meta Global de Adaptação (GGA, na sigla em inglês), realizado em março deste ano, em que foram apresentadas iniciativas ligadas ao reconhecimento constitucional dos direitos da natureza no Equador, o processo de restauração das zonas costeiras nas Ilhas Maldivas e a implementação do manejo de fogo por indígenas na Austrália. “Vocês são líderes nas suas regiões e quem realmente move as políticas climáticas para frente com suas experiências e conhecimento”, afirmou. Ele assegurou que os povos indígenas podem contar com seu comprometimento no apoio à Plataforma e aos alcances de seus propósitos.
Grupo de Trabalho da Delegação do Brasil. Foto: Kaianaku Kamaiurá/COIAB
Em Bonn, a delegação indígena brasileira contou brevemente sobre o processo de fortalecimento da agenda de Adaptação a partir do exemplo do Conselho Indígena de Roraima (CIR) na elaboração dos primeiros Planos de Enfrentamento Indígenas de Mudanças Climáticas, em 2014, que influenciaram o Plano Nacional de Adaptação. E citou o caso das comunidades Manchineri e Jaminawa, da Terra Indígena Mamoadate, Riozinho do Yaco, quanto à perda de sementes de milho, arroz, batata e mandioca, além de peixes no alto curso dos rios, obrigando as comunidades a se adaptarem a outro tipo de alimentação (não tradicional).
No reporte de contribuições sobre o Balanço Global, a demarcação das terras indígenas e a valorização de todos os biomas e povos do país foram ressaltados pelo grupo como parte das medidas necessárias para que o Brasil, enquanto sétimo emissor global de emissões, cumpra sua meta climática. E, como ilustrado através de slides na reunião, não conseguirá honrá-la caso o PL 490 e a tese do marco temporal sejam aprovados.
Élcio Manchineri, Coordenador Geral da COIAB, apresenta os resultados do trabalho em grupo da delegação brasileira sobre o Balanço Global (GST). Foto: Patricia Zuppi/RCA
Revisão da Plataforma em 2024
A Plataforma, criada pelo Acordo de Paris em 2015 e implementada a partir da instituição de um Grupo de Trabalho Facilitador em 2018, em Katowice, na COP24, é um órgão da UNFCCC que tem em sua composição sete cadeiras para membros indígenas e sete para as Partes da Convenção, ou seja, os Estados. Há, ainda, mais três para comunidades locais, porém, até hoje estão vagas. Ela será revisada na COP29, em 2024. Por isso, desde já a UNFCCC abriu chamada para avaliação de seus trabalhos, com foco principal nos resultados alcançados e na representação de comunidades locais, assuntos que já demonstraram ser bastante delicados.
A partir de falas fortes, tanto por parte dos membros, como dos observadores, ficou clara a necessidade de que a Plataforma ganhe mais importância dentro do processo de negociação e que sejam instituídos mecanismos de monitoramento das decisões que saem da Plataforma para as demais instâncias da UNFCCC, como sugeriu Kimaren Ole Riamit, da organização Indigenous Livelihoods Enhancement Partners (ILEPA), do Quênia. “A Plataforma não foi criada para ser um corpo desconectado do sistema. Isso é preocupante. Temos que dar vida ao trabalho da Plataforma porque não é suficiente participar, mas influenciar as decisões”, propôs.
“As pessoas comentam que a Plataforma tem pouca relevância, mas ela é uma conquista dos povos indígenas depois de muitos anos de luta e tem um papel muito importante de ser um espaço seguro para discussão e encaminhamento de decisões para o processo de negociação climática através do SBSTA”, avaliou Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC).
Sineia Wapichana/CIR, reconduzida à coordenação do CIMC, reporta os resultados da delegação brasileira nas discussões dos grupos de trabalho sobre Adaptação e revisão da Plataforma. Foto: Patricia Zuppi/RCA
A adoção de metodologias culturalmente adequadas aos povos indígenas considerando a diversidade de línguas e níveis de envolvimento com os processos da UNFCCC pela Plataforma em seu próximo ciclo de atividades foi uma contribuição do Brasil contemplada no rascunho do documento final da reunião. Outra questão crucial se refere ao encontro anual de detentores de conhecimentos tradicionais e aos encontros regionais, que deveriam melhorar o engajamento das comunidades e aprimorar seus mecanismos de transparência, inclusão e apoio nas várias regiões socioculturais existentes. Este também foi um ponto que passou, agora, a ser tratado como decisão desta instância.
Desenho de Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da ATIX, para a apresentação dos resultados e contribuições da delegação brasileira nos grupos de trabalho. Foto: Patricia Zuppi/RCA
Uma plataforma nacional
Conforme ressaltou Lapka Nuri Sherpa, ponto focal para a Ásia do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas, conhecido como Caucus Indígena, o que se viu na COP27 foi a maior representação de povos indígenas entre todos os eventos da UNFCCC e isso é fruto de um processo de conquistas. “Ao mesmo tempo em que precisamos celebrar esses avanços no nível internacional, com uma maior visibilidade para temas importantes como perdas e danos, soluções oriundas dos conhecimentos indígenas e uma abordagem baseada em direitos, sabemos que nosso desafio é levar esta Plataforma para os territórios, por isso enfatizo o trabalho de cada um, no nível nacional e local também”, disse Sherpa.
No Brasil, a criação de uma plataforma nacional é um objetivo a cada dia mais próximo, na medida em que abrem-se condições para a organização dos povos indígenas entorno da pauta climática por meio do recentemente relançado Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) e da Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI). “Temos muitas experiências no Brasil que podem contribuir com as discussões. Precisamos comunicá-las e vamos tentar trabalhar criando a nossa plataforma”, avalia Toya Manchineri, coordenador geral da Coiab.
Conforme Patricia Zuppi, secretária-adjunta da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), os avanços vistos na Plataforma em relação à incidência indígena brasileira neste espaço de atuação técnica na pauta de clima são resultados de um trabalho de vários anos. “Os esforços que agora ampliam possibilidades de incidência dos indígenas do Brasil incluem capacitações semestrais para atuação na Plataforma, a organização de equipamentos e intérpretes para a língua portuguesa, as articulações com o secretariado da UNFCCC e com o Caucus Indígena para incidir sobre mudanças nas dinâmicas de participação e na disponibilização de documentos em português”, elenca. “Foi muito importante fazer um alinhamento anterior. Viemos mais preparados. E desta vez pudemos nos comunicar em português”, ressalta Manchineri.
Delegação do Brasil durante o trabalho em grupo. Foto Kaianaku Kamaiurá/COIAB
A delegação indígena do Brasil em Bonn é composta por Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora do Comitê Indígena de Mudança Climática do Brasil (CIMC), Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cassimiro Tapeba, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e membro do CIMC, Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Xingu (ATIX), Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliel Rondon (Fepoimt), Kaianako Kamaiura (Coiab) e Dineva Maria Kayabi (Coiab e Rede Juruena Vivo) e tem apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
Dineva Kayabi/Coiabi e Cassimiro Tapeba/ Apoinme/APIB lideram junto com a delegação indígena do Brasil a cerimônia de encerramento da IX Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma LCIPP. Foto: Patricia Zuppi/RCA
De diversas regiões da Amazônia, representantes indígenas compartilham na COP27 reflexões e experiências sobre a PNGATI à luz do novo governo no Brasil.
Por Andreia Fanzeres/OPAN
Nesta quarta-feira, aconteceu no Pavilhão Indígena da COP27 o Painel “A Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) e os povos da Amazônia brasileira”. O objetivo foi demonstrar como esta é uma política estratégica no contexto da implementação de ações climáticas na Amazônia, que merece ser mais conhecida e apoiada. O evento reuniu lideranças indígenas de diversos estados amazônicos, que compartilharam experiências e visões sobre esta importante política pública para os povos indígenas do Brasil.
Os planos de gestão territorial e ambiental (PGTAs), um dos instrumentos para implementação da PNGATI, foram foco da análise dos painelistas. “Os planos precisam ser construídos de baixo para cima, pela coletividade e esse é um processo que pode levar anos de conversa”, destacou Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX). Zé Bajaga, da Federação das Organizações Indígenas do Médio Purus (Focimp) apontou que em sua região há 48 terras indígenas, mas só 8 têm planos de gestão. “Nós fazemos o trabalho de proteção territorial e de nossas águas”, ressaltou.
Foto: Jessica Maria Wapichana/CIR
“A formação também é importante e nos leva a espaços de incidência onde podemos compartilhar nossas experiências para a gestão de nossos territórios”, destacou Jessica Maria Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ela falou sobre protagonismo indígena no levantamento de informações e na produção de conhecimento que levam à construção de instrumentos como os planos de enfrentamento às mudanças climáticas e os calendários etnoecológicos. Também do CIR, Jabson Nagelo explicou como se dá o trabalho das brigadas indígenas em Roraima e do uso da tecnologia aliada ao conhecimento tradicional para fazer o monitoramento territorial.
Para Marciely Tupari, coordenadora secretária da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a formação sobre PNGATI e a implementação dela segue muito importante para os povos indígenas, e seria importante avançar na realização de intercâmbios entre povos que têm e os que ainda não têm planos de gestão sendo implementados nos territórios. “Muitas pessoas ainda não conhecem a PNGATI e não têm planos de gestão. Isso atrapalha a execução de projetos nos territórios. Precisamos aproximar os povos desse instrumento de política territorial tão importante, principalmente as mulheres. Eu era criança durante as consultas para a construção desta política e aprendi sobre ela porque minha mãe estava participando da construção”, relatou. “As mudanças climáticas afetam em especial mulheres e crianças e os planos de vida precisam garantir uma atenção especial a isso”, completou Dadá Baniwa, coordenadora do departamento de mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).
Dineva Kayabi, da Rede Juruena Vivo e coordenadora de mulheres da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), explicou que a Terra Indígena Apiaká-Kayabi, onde vive, ainda não tem plano de gestão e esse instrumento poderia ajudar a enfrentar as muitas ameaças que pressionam sua terra. “Na bacia do rio Juruena há 172 usinas hidrelétricas nos ameaçando, mas 70% delas ainda estão no papel. A Usina de Castanheira, em especial, pode afetar diretamente meu território porque podemos perder nossos peixes, a pescaria do tracajá, importante para a cultura dos Apiaká, além dos nossos remédios da mata, o acesso às sementes e outros.
Esses tantos problemas enfrentados pelos povos indígenas em seus territórios reforçam a relevância da retomada da PNGATI como uma política ainda mais forte no Brasil. De acordo com Sineia Bezerra do Vale, do CIR, que moderou o painel, esta é uma política vigente, que resistiu com firmeza aos últimos quatro anos de um governo que retrocedeu na proteção aos direitos indígenas porque foi construída a partir de um processo de consulta. “Temos uma grande expectativa de que com o novo governo no Brasil os nossos espaços internos de discussão e incidência sejam retomados. Se esta quer ser a COP da Implementação, o que a PNGATI precisa é de apoio e financiamento para ela acontecer no chão”, ressaltou. Alberto Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), fez uma relevante colaboração ao painel ao final, comentando que com a retomada dos espaços como o Câmara Técnica de Mudanças Climáticas do Comitê Gestor da PNGATI, do qual fazia parte, haverá melhores condições de interlocução entre os povos indígenas e o governo. “Até agora estamos pagando a conta sozinhos. Precisamos de apoio. Essa empreitada não é só nossa”, lembrou.
Sineia Bezerra do Vale/CIR. Foto: Edivan Guajajara/Mídia Índia
O evento foi organizado pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (OPAN), além de CIR, COIAB, ATIX, FOIRN, Rede Juruena Vivo, Fepoimt, Focimp, com o apoio da Fundação Rainforest Noruega, Fastenaktion, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Instituto de Educação do Brasil (IEB) e Instituto Socioambiental (ISA).
Delegação da Amazônia brasileira abre trabalhos na COP27 com contribuições técnicas na reunião da Plataforma Indígena da UNFCCC.
Barreira do idioma ainda é desafio.
Por Andreia Fanzeres/OPAN
Participantes da VIII Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, no Egito
O Brasil marcou presença na 8ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), que aconteceu de 1 a 4 de novembro em Sharm-el-Sheikh, no Egito. Como de praxe, a reunião desta instância oficial da UNFCCC acontece antes da abertura oficial da conferência do clima.
A novidade, nesta COP27, ficou por conta do momento inédito em que a delegação indígena da Amazônia brasileira aportou contribuições técnicas ao Plano de Trabalho da Plataforma. E demonstrou, de forma inequívoca, que se houvesse condições mais equânimes de participação por meio da garantia de tradução para o português, poderia ter feito muito mais.
A língua portuguesa não é um dos idiomas oficiais da UNFCCC. Por isso, nas reuniões dos órgãos da convenção do clima, não é fornecida estrutura de tradução, como fazem para o espanhol, árabe, francês, inglês, russo e chinês. A delegação brasileira tem comparecido às reuniões do grupo de trabalho facilitador da Plataforma com o apoio de uma intérprete e com aparelhos próprios de tradução. Apesar dessa solução provisória, são necessários esforços adicionais para superar as interferências e ruídos de um sistema paralelo de tradução, que, mesmo assim, não dá condições de comunicação amplas e equivalentes às dos demais observadores.
Dineva Kayabi apela por melhores condições de participação dos falantes da língua portuguesa nas reuniões da Plataforma (Foto: Andreia Fanzeres/OPAN)
Até agora, não há medidas para a solução do impasse. “A Amazônia tem centenas de povos indígenas que protegem milhares de hectares de florestas fundamentais para o equilíbrio do clima. A falta da tradução das reuniões para o português tem prejudicado a nossa participação. Precisamos criar pontes e não muros”, discursou Dineva Kayabi na plenária do último dia de reunião da Plataforma, em apenas dois minutos a ela concedidos.
Para Hindou Ibrahim, notória ativista indígena do Chad e ex-presidente do grupo de trabalho facilitador entre 2020 e 2021, a falta de tradução implica numa questão de inclusão e acessibilidade às discussões que interessam aos povos indígenas e comunidades locais, sendo uma barreira ao compartilhamento e valorização do seu conhecimento tradicional, que é uma das funções da Plataforma. “É obrigação da Plataforma encontrar as facilidades, inclusive tecnológicas, para que os intérpretes digam de um modo que todos possam entender o que os povos indígenas estão falando”, afirmou. “As línguas oficiais das Nações Unidas não atendem e não garantem a participação de detentores de conhecimento. É preciso flexibilidade”, pontuou Hindou enquanto relatava a realização de uma das atividades da Plataforma. Segundo ela, há muitos povos de seu país que não falam francês nem árabe, razão pela qual a tradução foi garantida na reunião bi-regional da África e Ásia, que ocorreu em N’Djamena, no Chad, em outubro deste ano.
Jéssica Wapichana é porta-voz do grupo técnico indígena do Brasil durante a reunião da Plataforma
“Este é um espaço que precisa ser conquistado pelos brasileiros na Plataforma e isso vai beneficiar não só a Amazônia, mas pessoas de outros países também”, avalia Jessica Wapichana, jovem gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Jéssica foi a porta-voz da delegação brasileira que constituiu um grupo técnico durante a reunião da Plataforma, quando foram solicitadas contribuições concretas ao plano que implementa as atividades definidas em 2021 e deverão ser concluídas até 2024. Afinal, a chamada “COP da implementação” foi lema também da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC.
Jéssica Wapichana relata as contribuições da delegação da Amazônia brasileira no plano de trabalho da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.
Contribuições técnicas
Uma das principais sugestões da delegação indígena brasileira foi ligada à atividade 5 do plano de trabalho, que é a promoção de treinamentos para membros dos países e agências da ONU para um maior engajamento nas questões indígenas. Neste caso, a proposta é de ampliar esforços para que novos países engajem-se na plataforma, que é composta de modo paritário por indígenas e representantes dos Estados, e não apenas aqueles que já estão envolvidos. Isso poderá promover melhores condições de incidência dos povos indígenas em suas pautas nas mesas de negociação da UNFCCC, pois apenas os países têm poder de voto. Esta proposta responde objetivamente ao cenário exposto por Pasang Sherpa, diretora executiva do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento dos Povos Indígenas do Nepal (Cipred). “Os povos indígenas têm também um papel importante trabalhando com os governos porque as mudanças têm que acontecer em todos os níveis. O engajamento dos Estados não tem sido suficiente”, observou.
Outra contribuição importante da delegação brasileira referiu-se à atividade 3, que busca identificar e disseminar informações sobre o desenvolvimento e o uso de currículos e materiais elaborados por povos indígenas ligados às questões climáticas destacando o conhecimento tradicional em sistemas educacionais formais e informais. Esse, aliás, foi um dos temas que suscitaram mais comentários e contribuições entre os membros e os observadores presentes em Sharm-el-Sheikh. “Em Camarões, é preciso estabelecer um sistema educacional diferenciado por causa da condição nômade dos povos”, comentou uma indígena do país.
Grupo do Brasil elabora contribuições para a Plataforma. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.
Walter Gutierrez, representante governamental do Grupo da América Latina e Caribe (Grulac), que é indígena aymara, compartilhou exemplos da Bolívia na construção de currículos próprios dos povos indígenas com um eixo articulador comum: harmonia e equilíbrio com a Mãe-Terra. “Há povos que vivem a mais de 4.500 metros acima do nível do mar, onde a água disponível é salgada. Eles têm conhecimento para lavar o sal da água e semear. Na nossa Constituição, reconhecemos o modelo educacional sociocomunitário produtivo, buscando coerência da educação com a cultura e a língua dos povos. O conhecimento não está limitado aos livros. Ele é construído ao longo da vida e há formas diferentes de compartilhar esse conhecimento além da escola”, disse.
Lokol Paulo, indígena de Uganda, sugeriu que seria importante tecer esforços para documentar os diferentes sistemas de conhecimento. “Os saberes indígenas são dinâmicos, dependem das condições ambientais, dos territórios, está sempre mudando. Nós aprendemos com a experiência”, afirmou. “No sistema aborígine, nenhuma criança é reprovada. Quando ela chega aos 12 anos, já tem doutorado em ciências ambientais, biologia marinha, astronomia. Isso não se ensina no papel. Está no nosso DNA. Educação é soberania”, acrescentou o ancião Ray Minniecon, da Austrália.
Lokol Paulo, de Uganda, fala sobre a importância de documentar e proteger os sistemas de conhecimento dos povos indígenas. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN.
O Brasil, nesse assunto, não fica para trás. “Nosso país tem larga experiência na construção de políticas públicas ligadas à educação indígena, valorizando o conhecimento dos povos no sistema educacional, seja formal ou informal. Por isso sugerimos que nos próximos anos nosso país tenha espaço para compartilhar na plataforma todas essas experiências”, falou Jessica Wapichana, enquanto relatava as contribuições do grupo de trabalho dos indígenas brasileiros.
Delegação RCA-OPAN participando dos trabalhos da Plataforma. Foto: Ianukala Kaiabi Suiá.
A Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e a Operação Amazônia Nativa (OPAN) trabalham em parceria na preparação e acompanhamento de indígenas da Amazônia brasileira em espaços de incidência internacional, como a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Na COP27, participam Sineia Bezerra do Vale, Jéssica Maria Wapichana, Jabson Nagelo (Conselho Indígena de Roraima), Dineva Maria Kayabi (Rede Juruena Vivo), Ianukula Kaiabi Suiá (Associação Terra Indígena Xingu), Dadá Baniwa (Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro), com tradução de Merel van der Mark e assessoria de Patrícia Zuppi (RCA), Andreia Fanzeres e Gustavo Silveira (OPAN).
Registros de avaliações da delegação realizadas em reuniões durante e após a participação na COP27
Em resposta ao informe lançado pelo governo brasileiro como parte do processo da IV Revisão Periódica Universal do Brasil, que será realizada em novembro pelo Conselho de Diretos Humanos das Nações Unidas, o Coletivo RPU publicou uma Carta Aberta.
O Coletivo RPU é a principal coalizão nacional, composta por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira, entre as quais a RCA, APIB e Iepé, que se dedica a monitorar e incidir sobre a implementação das recomendações ao Brasil no processo de Revisão Periódica Universal (RPU) das Nações Unidas.
Em matéria publicada no site da UOL Notícias, em 29 de agosto, o jornalista Jamil Chade destacou a posição do Coletivo RPU em relação ao Relatório do governo, indicando que o Brasil “omitiu a fome e as mortes por Covid, num informe com tom de campanha”.
No Coletivo RPU, a RCA tem coordenado o monitoramento das recomendações sobre povos indígenas e meio ambiente, em parceria com APIB e Iepé.
No 3º Ciclo de RPU do Brasil as 34 recomendações voltadas ao tema indígena apontavam para a “necessidade do Brasil avançar na promoção e no respeito aos direitos indígenas, continuar com a demarcação de terras indígenas, prevenção do racismo e discriminação, proteção de lideranças indígenas, obrigação de realizar consultas prévias, promoção da saúde indígena, mortalidade infantil, alimentação e saneamento nas aldeias e implementação da política climática e redução do desmatamento”.
Entretanto, conforme indicado pelo documento produzido pelo Coletivo RPU foi verificado não só o descumprimento, mas os retrocessos da maioria das recomendações dadas ao Brasil, num governo declaradamente anti-indígena. A análise indica dados concretos sobre “a paralisação da demarcação dos territórios, a extinção dos colegiados de participação social, iniciativas legislativas para desfigurar os direitos constitucionais indígenas, afrouxamento da legislação ambiental e propagação de discursos racistas e preconceituosos contra os povos indígenas por autoridades governamentais” verificados e agravados sob o governo Bolsonaro.
Para saber mais, seguem as versões em português e inglês da CARTA ABERTA DO COLETIVO RPU:
A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.