Patrimônio Cultural Indígena: Pesquisar para Conservar e Conservar para Preservar

Representantes indígenas e indigenistas do Acre, que participaram do Encontro Temático da RCA sobre Gestão de Patrimônios Culturais Indígenas, avaliam a importância e a atualidade dos temas debatidos no evento, em entrevista para a jornalista Lígia Apel. A matéria, reproduzida abaixo, foi publicada no site da CPI-AC: www.cpiac.org.br

Respeito, valorização, fortalecimento do patrimônio cultural indígena e criação de políticas públicas específicas, foram algumas das temáticas discutidas no Encontro Temático Gestão de Patrimônios Culturais Indígenas: compartilhar conhecimentos construindo elos, que aconteceu no auditório do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, nos dias 26 a 30 de setembro de 2010.

Numa realização da Rede de Cooperação Alternativa Brasil – RCA e do Museu do Índio – FUNAI, esta Roda de Conversa reuniu representantes dos povos indígenas do Rio Negro e Vale do Javarli, na Amazônia; Yanomami, em Roraima; Xingu, no Mato Grosso; Timbira, no Maranhão; Tiriyó, Kaxuyana e Wajãpi, no Amapá; Yawanawá e Kaxinawá, no Acre. Também estavam presentes com suas experiências institucionais todas as organizações integrantes da RCA. Indigenistas: CPI/AC – Comissão Pró-índio do Acre; CTI – Centro de Trabalho Indigenista; IEPÉ – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena; ISA – Instituto Socioambiental; e indígenas: Apina – Conselho das Aldeias Wajãpi; Atix – Associação Terra Indígena Xingu; Foirn – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro; HAY – Hutukara Associação Yanomami; OPIAC – Organização dos Povos Indígenas do Acre; e Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins.

As experiências que ali se encontraram mostram apenas uma pequena parte da diversidade cultural do mundo indígena brasileiro. São vários povos que de uma forma ou de outra, resistiram com seu jeito de ser e viver, às pressões da sociedade envolvente. Apesar de muitas pessoas, inclusive autoridades, acharem que as culturas dos povos não resistem, há quem diga que elas não sucumbem, essa é a opinião de Zezinho Yube Kaxinawá, Agente Agroflorestal Indígena da Terra Indígena Praia do Carapanã, em Tarauacá – Acre, “os povos indígenas resistem nesse mundo tão grande que a gente mora hoje, nessa sociedade esmagadora que a gente tá envolvido. Isso parece forte – e é forte, mesmo – porque muitos jovens perderam o interesse de aprender com os mais velhos e os mais velhos perderam a vontade de ensinar, porque é maior o interesse em aprender as coisas da sociedade envolvente, que é festa, que é religião, que é música, a influência em geral. Mas, com tudo isso, as culturas indígenas estão resistindo”. Para Zezinho, isso ficou muito claro, muito evidente nas apresentações dos participantes, tanto indígenas como organizações e instituições parceiras.

Evidente, também, ficou que muito se tem feito pra revigorar o que estava quase perdido e fortalecer o que nunca se perdeu. Apresentar as diferentes formas de enfrentar o desafio e mostrar as experiências, as boas práticas de gestão cultural e iniciativas de valorização cultural que vem sendo desenvolvidas foram objetivos importantes do encontro. “Esse encontro de vários povos indígenas foi importante pra discutir o que cada povo está fazendo pra revitalização da sua própria cultura. As apresentações mostraram que a situação dos indígenas desde o contato, a pressão vinda de todos os lados, foi fazendo os povos irem perdendo seus traços culturais, as suas manifestações culturais como rituais, festas, pinturas, iniciações, etc. Mas também mostrou as diferentes maneiras que cada povo enfrentou, e está enfrentando, essa pressão”. Para Zezinho, a tarefa não é fácil e precisa muito trabalho para as atividades culturais que não são mais realizadas voltem a ser exercidas pelas populações indígenas e aquelas que não se perderam, sejam fortalecidas. “Todos estão trabalhando pra isso. Senti dos povos muita força e energia pra reviver e tentar reverter a situação e acho que a gente se sente mais fortalecido junto com esses povos, olhando o que o outro está fazendo, pois temos a mesma visão da linha por onde devemos seguir”.

O olhar parceiro

No olhar parceiro da coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio do Acre, Malu Ochoa, o Encontro trouxe dois elementos muito importantes: 1. Existem diversas maneiras, diferentes estratégias sendo realizadas para o fortalecimento do patrimônio cultural indígena. 2. Há uma grande preocupação com a preservação do patrimônio que está sendo registrado por todos. “O encontro mostrou o quanto é importante a troca de experiências porque elas indicam que existem diferentes caminhos que podem ser seguidos para esse fortalecimento e há uma grande preocupação de todos pela preservação disso tudo que está sendo construído. Muitas iniciativas de outras instituições, a maneira como elas vem trabalhando, podem ser incorporadas por outros, principalmente quando são sistematizadas”, diz Malu.

A experiência da CPI/AC, que há trinta e um anos vem sendo parceira dos povos indígenas, atuando, sistematizando e compartilhando os avanços do processo de construção e reconstrução das diferentes culturas, das diferentes línguas, dos diferentes olhares, contribuiu na luta em defesa dos povos indígenas e seus territórios. Malu reforça a autoria indígena e a importância da sistematização no processo: “em todo esse tempo de parceria, nós conseguimos reunir materiais, relatórios, ilustrações, mapas, fotografias. Publicamos muita coisa importante construído pelas comunidades, de autoria das comunidades indígenas. E isso tudo, todas essas experiências, assim como as experiências de outras instituições e a maneira como vem se trabalhando, quando sistematizadas, podem ser discutidas e incorporadas para outros produtos e outras experiências”.

É o que aconteceu, e vem acontecendo, ao longo desses anos todos. Com ações realizadas em parceria, a contribuição da CPI/AC se deu dentro de um contexto histórico em diversos momentos da luta pela defesa dos povos indígenas. Uma luta específica, um momento específico, um produto específico sistematizado e publicado, leva a outra luta, a outro momento, a outro produto. A exemplo da formação de professores indígenas. A iniciativa desenvolvida pela CPI/AC com os professores, que através da pesquisa, identificou traços culturais, formas de manifestação cultural, estratégias de educação e repasse de conhecimentos de geração a geração, enfim, todo um conteúdo pesquisado, sistematizado e difundido, trouxe conquista após conquista e hoje, o resultado está aí: professores mobilizados, organizados em uma entidade de classe, a OPIAC – Organização dos Professores Indígenas do Estado do Acre, e, mais que isso, a manutenção dos aspectos culturais dos povos – sua música, seus cantos, sua dança, sua culinária, sua religião. Uma ação concreta – os cursos de professores indígenas – com seu conteúdo pesquisado, sistematizado e difundido – publicações – se estendendo para dentro das Terras Indígenas.

A preservação é o desafio

É indiscutível a necessidade de preservar o patrimônio cultural que está sendo construído e sistematizado pelas comunidades indígenas e pelas organizações parceiras. Todos os participantes do Encontro Temático da RCA mostraram essa preocupação. “As experiências apresentadas demonstraram que são enormes as dificuldades com relação à preservação dos seus acervos”, diz Malu. As dificuldades e os desafios apresentados foram diversos: é difícil a conservação dos materiais por conta do clima – umidade demais ou seco demais; é difícil encontrar recursos humanos – pessoas capacitadas e com habilidade para esse trabalho; há necessidade de acondicionamento adequado para materiais impressos, fotográficos ou mesmo em imagem; enfim, é preciso ter pessoas e estruturas especiais para esse tipo de preservação, que é especial.

Porém, a experiência e prestatividade do Museu do Índio foram alentadoras, pois além de indicar formas de acondicionamento e organização de acervos, ele se mostrou aberto para conversar sobre as realidades. Para a CPI/AC, “essa importância dada pelo Museu à preservação nos motivou a impulsionar essa atividade e, agora, pensamos numa parceria para favorecer a preservação do patrimônio cultural dos povos indígenas do Acre. Vamos nos apoiar em seu processo organizativo para organizar o nosso acervo”, afirma Malu com otimismo. Além disso, o Museu do Índio possui e disponibiliza muitas informações e documentos sobre os índios do Acre, o que vai fortalecer bastante o acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Indígena – CDPI, da CPI/AC. O que é bastante animador para a historiadora e técnica em organização de arquivos Elizanilde Alvez, responsável pela documentação do CDPI: “desse encontro surgiram várias possibilidades para novos projetos de apoio a esse trabalho de organização de Centros de Documentação. Para o nosso trabalho no CDPI, pude visitar as instalações da biblioteca e do arquivo do Museu do Índio e conhecer o modelo organizacional daquela instituição, que é uma referencia no modelo de gestão documental. Muito nos conforta saber que iniciamos o trabalho aqui no CDPI no caminho certo”. O tratamento, organização e disponibilização dos documentos produzidos pelas comunidades indígenas e também dos materiais produzidos sobre elas é fundamental para a preservação deste patrimônio.

Desafios que tocam a todos

Os 19 representantes de povos indígenas, organizações indígenas e entidades parceiras presentes no Encontro identificaram vários desafios, entre eles tem os específicos de cada lugar, mas muitos são comuns:

  • Algumas políticas públicas incentivam a dependência dos indígenas na cultura não índia. Jovens que vão estudar fora de sua aldeia, não retornam ou quando retornam procuram impor costumes diferentes nas comunidades;
  • A estadualização das escolas indígenas, ou seja, quando o Estado assume as escolas, traz muitos problemas. Por exemplo, o perfil do professor de uma escola estadualizada é diferente do perfil necessário para um professor indígena. O professor indígena deve ter incorporado a cultura daquele povo, as motivações da luta pela terra, das negociações por políticas públicas, das ações de fortalecimento e preservação do patrimônio cultural devem ser da natureza do professor indígena.
  • Há muitas igrejas e instituições religiosas dos não índios entrando nas aldeias. Com isso, alguns velhos depois de começar a participar deixam de exercer os seus rituais e manifestações religiosas de sua cultura;
  • Os Pontos de Cultura Indígenas conquistados precisam ser fomentos da cultura indígena, daí a importância de ser trabalhado o conteúdo a ser divulgado por essa ferramenta tecnológica. Caso contrário, pode se tornar um instrumento destrutivo dela.
  • A televisão que chegou nas aldeias é importante como veículo de informação, mas é um conhecimento que deve ser usado a favor dos povos indígenas. O que é muito difícil de acontecer.

Esses são alguns dos problemas comuns que apareceram no Encontro Temático da RCA. Difíceis de serem resolvidos, mas a simples conversa a respeito deles iluminou alguns caminhos. A partir deles, foram sistematizados 03 grandes desafios e estratégias de ação:

  1. Em relação ao patrimônio cultural o grande desafio posto é definir o que guardar e registrar; como fazer para bem guardar estes materiais e, o mais importante, porque guardar esse material.
  2. Tendo em vista as influências recebidas da sociedade envolvente e/ou o uso indevido de informações e conhecimentos indígenas, será preciso estabelecer restrições para a transmissão dos conhecimentos?
  3. Qual é o papel do pesquisador indígena na comunidade? Simplesmente coletar informações ou contribuir com o fortalecimento e o vigor das formas e jeitos do viver indígena?

A vivência da parceira CPI/AC, aos olhos de Malu Ochoa, traz uma certeza quando se depara com outras experiências tão ricas quanto a dela. “existem experiências diversas de fortalecimento, de formas de revigorar o patrimônio cultural indígena, mas todas elas buscam sua preservação. E o que mais impressiona nesse trabalho de busca, de pesquisa das características culturais de um povo, é que muitas vezes, há coisas escondidas dentro da pessoa, muitos indígenas tem sua cultura latente dentro de si. E a pesquisa contribui para trazer à tona, para dar visibilidade e ação ao que estava escondido. E, claro, a pesquisa também contribui com o fortalecimento das outras características culturais dos povos indígenas que estão bastante vivas e atuantes”. O trabalho nada mais é do que buscar essas manifestações, reunir e valorizar tudo isso e organizar para poder dividir.

por Lígia Apel

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