Reconhecimento internacional

Pela primeira vez como painelista numa atividade oficial da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC, Sineia Wapichana fala sobre o pioneirismo dos estudos de caso sobre mudanças climáticas nas terras indígenas de Roraima.

Andreia Fanzeres/OPAN

Sineia Wapichana, do CIR, no painel da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas na Conferência de Bonn, em junho de 2023.
Foto: Ianukula Kaiabi Suia/ATIX

Foram necessárias nove reuniões do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) até que uma representante indígena do Brasil fosse convidada para compartilhar percepções e experiências de enfrentamento às mudanças climáticas. Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), fez história em Bonn em 2023, cidade alemã que ela conhece tão bem. Por quase uma década ela acompanha esta agenda na sede da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) para, depois, fazer todos os anos o difícil caminho de volta para as comunidades, trabalhando localmente aquilo que se busca alcançar globalmente.

O convite para participar na condição de detentora de conhecimentos indígenas na Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima foi consequência direta das informações prestadas pela delegação brasileira sobre a influência indígena na construção do Plano Nacional de Adaptação do Brasil.

No dia 1º de junho, Sineia reportou aos membros da Plataforma e observadores sobre os estudos de caso de mudanças climáticas em Roraima elaborados 10 anos atrás em apenas três minutos a ela concedidos na reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (9FWG). Somada aos esforços de participação dos indígenas brasileiros nas instâncias da Convenção do Clima nos últimos anos, tal contribuição foi considerada tão relevante que Sineia finalmente recebeu a proposta de explicar com mais tempo e detalhes o trabalho local que desenvolve no Departamento de Gestão Ambiental e Territorial do CIR. 

Assim, no dia 7 de junho, em uma das duas atividades oficiais da Plataforma que aconteceram durante a Conferência SB58, que prepara o terreno para a COP28, Sineia fez uma apresentação de slides que, nas palavras do Secretariado da Plataforma, “deu exemplos concretos” do processo de elaboração de contribuições dos indígenas às políticas e ações climáticas.

Apresentação de Sineia Wapichana durante a Atividade 5 da LCIPP.
Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

“Nós, povos indígenas, somos os primeiros a sentir os impactos do que pra nós é a transformação do tempo e isso nos impulsionou a fazer um trabalho na nossa região para mostrar como podemos construir nossos planos para enfrentar as mudanças climáticas, tanto para contribuir com as políticas públicas do Brasil como para trazer como exemplo a outros países”, explicou Sineia. Ela referia-se a “AmazadPana’adinhan: percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas – Região Serra da Lua/RR”, publicação pioneira e ainda única no país, que foi referência para o subcapítulo indígena do Plano Nacional de Adaptação, de 2016, instrumento da Política Nacional de Mudanças Climáticas.

“Para mostrar como as transformações do tempo estão nos afetando, fizemos estudos de caso para saber como estava nossa vida cultural, a pesca, a caça, a agricultura. Dentro dos nossos estudos vimos que os rios aqueceram, os peixes regionais não estavam mais lá. O canto dos pássaros que guiavam as colheitas e plantações não acontecem mais. Como podemos ter políticas para enfrentar esses problemas? Nos planos de enfretamento não estão apenas nossa percepção holística, mas as demandas que devem ser fortalecidas com recursos públicos para enfrentarmos as mudanças climáticas”, aponta.

Plano de enfrentamento às mudanças do clima elaborado pelo Conselho Indígena de Roraima que foi referência para o PNA do Brasil

De Roraima ao Juruena e ao Ártico

Conforme ilustrou Sineia, a rotina das mulheres e o trabalho com as crianças têm sido importantes e reveladores daquilo que é prioridade no enfrentamento às mudanças climáticas. Por isso, elas recebem atenção especial nos planos de enfrentamento e nas várias iniciativas locais de formação e discussão sobre clima liderados por Sineia em Roraima.

A ação das mulheres é protagonista em vários outros contextos dentro e fora do país. Dineva Kayabi (povo Kawaiwete), que também observou as várias intervenções de Sineia e de indígenas do mundo inteiro nas discussões sobre clima em Bonn, recorre a um outro exemplo de percepção e adaptação às transformações hoje mais facilmente percebidas no tempo. Conforme conta Dineva, os Kawaiwete do rio dos Peixes, que vivem na bacia do rio Juruena, em Mato Grosso, cultivam e utilizam cinco tipos diferentes de amendoim. Mas do ano passado para este as indígenas não puderam preparar chicha nem mingau, o que teve um efeito direto na nutrição das crianças e na renda das famílias. “No mês de setembro, dá na mata frutinha chamada ‘chimico’. Ela é usada no nosso calendário como indicador. É ela que diz pra gente quando é hora de plantar o amendoim. Mas em 2022 a chuva atrasou e pela primeira vez não deu para plantar”, disse Dineva. Segundo ela, as sementes de amendoim ficaram guardadas em garrafas e sacos para que não se perdessem e, este ano, a expectativa é de que elas possam finalmente germinar.

Frutinha Chimico.
Foto: Dineva Kayabi/Rede Juruena Vivo-COIAB

O conhecimento tradicional indígena é um modo sistemático de pensar, baseado em evidências, observações e experiências intergeracionais de longo prazo. Foi o que defendeu num emocionante discurso Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, ressaltando que não é preciso ter Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) nem Balanço Global para saber que o Ártico está mudando. “Nossa visão do futuro é enraizada pelo passado. A ciência indígena, o conhecimento coletivo, guardam muitas respostas. São milhares de anos de observação. Nomeamos cada pedaço da costa, cada esquina de nossas terras. Nomear nosso território é uma forma de expressarmos nosso conhecimento. Esse tipo de observação nos permite inovar e prosperar no Ártico. Nós amamos nossa terra natal”, falou. “Antes dos cientistas, já estávamos falando de mudanças climáticas. E nós, Inuítes, queremos compartilhar esse conhecimento. Se protegermos o Ártico, protegeremos o planeta. Precisamos proteger a terra, a água, o nosso gelo. O respeito aos direitos indígenas é ação climática”, seguiu Lisa.

Lisa Koperqualuk, do povo Inuíte, na abertura da atividade 5 da LCIPP.
Foto: arquivo pessoal/redes sociais

A UNFCCC hoje reconhece que povos indígenas e comunidades locais detém valores, perspectivas de mundo e práticas tradicionais que contribuem com os esforços coletivos de enfrentamento às mudanças climáticas e à construção de resiliência. Mas sua marca nas políticas climáticas locais, nacionais e internacionais ainda não são conhecidas nem tão visíveis. “Com pouquíssimas exceções, podemos dizer que os povos indígenas são invisíveis como detentores de direitos e de conhecimento. Nós somos representados pela ótica das vítimas, por sermos afetados e beneficiados por projetos. Mas essa é uma perspectiva muito limitada e que precisa ser mudada”, disse Lakpa Nuri Sherpa, um dos autores de um estudo que em 2022 analisou as metas climáticas de 10 países asiáticos (https://aippnet.org/indigenous-peoples-rights-in-ndcs-initial-observations-from-asia/).

Durante a apresentação em um evento paralelo dos resultados de um estudo desenvolvido pela rede Asia Indigenous Peoples Pact, que abrange 14 países, Sherpa ressaltou também a discriminação sistemática contra povos indígenas quando o assunto é seu envolvimento nas discussões e políticas climáticas e a importância do trabalho nas comunidades. “Mudança climática é uma palavra que não existe na maioria das línguas indígenas. É difícil de explicar. Os estudos que fazemos são importantes para discussão em espaços como este, mas têm que ser também úteis para as comunidades. O nível de atuação nacional e local são muito importantes, temos que estar lá”, reforça Sherpa, alinhando-se e reforçando a trajetória de luta e persistência de Sineia Wapichana, em Roraima.

“Precismos ter os direitos dos povos indígenas garantidos, com nossos conhecimentos somados aos científicos, para não só identificar a percepção, mas para encontrarmos saídas para diminuir o aquecimento do planeta. Os povos indígenas vêm contribuindo com seus saberes em todo o mundo. E eu trouxe essa experiência para dizer que é possível”, encerrou Sineia Wapichana, muito aplaudida.

A delegação indígena do Brasil na SB 58, em Bonn, teve o suporte da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Clique aqui para assistir à apresentação de Sineia Wapichana e dos demais convidados da Oficina de Treinamento para Partes e Órgãos Constituídos da Convenção do Clima, que ocorreu em Bonn no dia 7 de junho de 2023: https://unfccc.int/event/annual-training-workshop-for-parties-and-constituted-bodies-transforming-climate-action-through

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