Aprendendo com quem sabe

Intercâmbio de experiências indígenas sobre clima mostra pioneirismo de Roraima no trabalho técnico de formação nos territórios para uma incidência internacional de qualidade.

Por Andreia Fanzeres/OPAN

Intercâmbio de iniciativas locais de povos indígenas no enfrentamento às mudanças do Clima, Lago Caracaranã. Foto: Comunicação CIR

TI Raposa Serra do Sol, RR – As noites quentes à beira do Lago Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, fizeram os participantes do “Intercâmbio de experiências locais de povos indígenas sobre mudanças climáticas” a sentirem na pele o incômodo de um mundo mais quente e desequilibrado. O cenário paradisíaco daquele pedacinho de chão de água doce, do exclusivo lavrado roraimense e das montanhas na fronteira com a Guiana foi palco de um encontro organizado pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) com o objetivo de discutir temas importantes ligados à agenda de clima, entre eles gestão territorial e incidência internacional, desta vez num território símbolo da luta pelos direitos dos povos indígenas, cuja energia contagiou os presentes.

“Nesse intercâmbio de experiências dos estados da Amazônia e de todas as regiões de Roraima, estamos tratando e discutindo temas relevantes para contribuir com um plano de enfrentamento macro para toda a Amazônia, para que a gente possa ter uma influência no PNA [Plano Nacional de Adaptação]. A gente quer um plano que nós construímos e não de cima para baixo”, explicou Sineia do Vale, do povo Wapichana, coordenadora do Departamento de Gestão Territorial e Ambiental do CIR e coordenadora nacional do Comitê Indígena de Mudança Climática (CIMC). Não há tempo a perder. “Esse é um momento de crise climática e precisamos estar a postos para ajudar as nossas comunidades”, alerta.

Sineia do Vale, do povo Wapichana, com Maria de Fátima André, do povo Macuxi, e Raquel Wapichana, apresentando trabalhos do CIR no Departamento de Gestão Territorial e Ambiental e no Núcleo da Juventude. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

Há cerca de dez anos, o CIR publicou seu primeiro plano de enfrentamento às mudanças climáticas com base nas experiências locais na região da Serra da Lua, na porção leste do estado. Além de ter servido como referência para elaboração do sub-capítulo indígena do primeiro Plano Nacional de Adaptação do Brasil – publicado em 2016 e atualmente em fase de revisão – este ano o trabalho foi apresentado pela primeira vez numa atividade da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção do Clima, em Bonn, na Alemanha, no mês de junho.

Agora, em Roraima, foi a vez de os participantes conhecerem em primeira mão as experiências de construção de outros dois planos, os da região do Amajari e os da própria Raposa Serra do Sol, que estão sendo finalizados e ainda não foram publicados. Tratam-se de trabalhos feitos com as comunidades, que devem participar ativamente desses mecanismos para compreendê-los e utilizá-los. “É muito importante que as comunidades estejam cientes sobre salvaguardas e seus direitos, e para isso precisam ter acesso a essas informações com linguagem simples e respeitando seu modo de vida”, destaca Sineia.

No encontro, além das lideranças de diversas regiões etnoambientais de Roraima que compõem o CIR, cada representante indígena foi convidado a compartilhar sua vivência, ações e reflexões acerca das mudanças climáticas. Além do CIR, que foi anfitrião, participaram pela RCA a Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), a Organização Geral dos Mayoruna (OGM), a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), a Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac) e a Rede Juruena Vivo com representantes dos povos Rikbaktsa, Manoki e Kawaiwete.

Representantes das organizações de base da RCA e Rede Juruena Vivo visitam sede do CIR antes do início do intercâmbio. Foto: Comunicação/CIR.

Para Patrícia Zuppi, secretária-executiva adjunta da RCA, a mudança na metodologia das capacitações sobre incidência climática e o seu deslocamento para um contexto de território pretendeu valorizar o intercâmbio entre as lideranças indígenas, fortalecendo as estratégias de incidência dos povos indígenas na pauta de clima. “Nós sempre fizemos reuniões preparatórias antes da agenda internacional e buscamos mapear o contexto da Convenção do Clima, seus espaços, modos de funcionamento e oportunidades de participação dos povos indígenas, entendendo quais são os temas prioritários de interesse das comunidades. A partir desse entendimento e desse mapeamento, acreditamos que os representantes indígenas possam se preparar melhor para levar a esses espaços as suas vozes e perspectivas. Nós estamos fazendo isso há alguns anos, sempre numa articulação com o movimento indígena. Agora, a capacitação num território indígena, um desejo antigo das lideranças, buscou enraizar mais essas conversas, contemplando melhor as experiências, iniciativas e demandas provenientes dos territórios”, detalhou.

Aprendizados para a Rede Juruena Vivo

O pioneirismo do CIR na pauta de clima pôde ser entendido dentro de seu histórico de formação política do movimento indígena há mais de cinco décadas. A experiência de antigas lideranças presentes ao encontro, somadas às falas potentes e engajadas dos jovens, não só representaram concretamente o sentido do intercâmbio, mas impressionaram os participantes da Rede Juruena Vivo no encontro.

“A organização deles [CIR] é muito forte. Podemos levar como experiência para a nossa comunidade o envolvimento dos jovens, para que eles possam adquirir esse conhecimento, mostrando que eles têm capacidade de ajudar na organização do povo, como vimos em Roraima. As mudanças climáticas são um aprendizado novo. É muito importante repassar isso”, comentou Givanildo Bismy, do povo Rikbaktsa. Como apontou Dineva Kayabi, vice-tesoureira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), representante do povo Kawaiwete e membro da Rede Juruena Vivo, é bonito de ver como os jovens participam e encaram a responsabilidade. “Cada vez que eu venho aqui eu me fortaleço, levo como referência essa juventude. É meu orgulho”, falou.

“A gente aprende muito quando vem pra esse lugar e conhece a experiência de luta do movimento indígena de Roraima pela perspectiva deles próprios. Foi inspirador. Vivemos numa região em que todos estão sentindo as mudanças climáticas, mas é difícil conectar isso com as discussões nacionais e internacionais porque elas são complexas, cheias de siglas. Temos um desafio de valorizar a perspectiva de quem está no local, o conhecimento e levar a mensagem das comunidades adiante, transformando isso em política pública e em ações concretas”, avaliou Liliane Xavier, indigenista da OPAN.

Participantes do estado de Mato Grosso apresentam-se à Plenária – OPAN, Rede Juruena Vivo e ATIX/Fepoimt/RCA. Foto: Patrícia Zuppi/RCA.

Tipuici Manoki, que já representou a Rede Juruena Vivo nacional e internacionalmente, ressaltou a importância de mulheres como Telma Taurepang e Sineia do Vale, que estavam ao seu lado, no processo de formação política na luta por direitos e para incidência em clima quando os indígenas que já tinham ido a uma Conferência do Clima foram convidados para compartilhar sua experiência. “É muito verdadeiro quando a Telma diz que as universidades não nos ensinam a estar nesses espaços porque são políticos. O que eu aprendi foi durante minha vida no movimento. Eu não planejei isso. Sempre lutei pelo meu povo e meu território e as consequências das minhas ações me levaram até a COP, em Katowice, na Polônia, em 2018, depois para Berlim, em 2019 e agora para cá”, relatou.

Tipuici falou também sobre a importância de estudar e se preparar para uma atuação fora do país, principalmente no tema de clima. “Participamos de formações locais, estaduais, depois em Brasília quando fomos para a COP. As formações fazem a gente entender esses espaços, mas nossa capacidade de falar em pouco tempo e com as palavras chave, na linguagem deles, depende do quanto nós estamos envolvidos com os nossos territórios”, pontuou.

Intercâmbio de experiências locais dos povos indígenas sobre mudanças climáticas. Foto: Patrícia Zuppi/RCA.

“Estamos mais uma vez fazendo formação. Logo mais teremos o nosso Festival Juruena Vivo e já temos uma mesa para falar sobre clima. Quero agradecer mesmo à Sineia e estou com esperança para fazermos o nosso plano de enfrentamento. Tenho orgulho de dizer que nós fizemos nosso protocolo de consulta depois dessas incidências. Com os materiais do CIR e toda essa bagagem de conhecimento, vamos amadurecer ainda mais. Precisamos levar tudo isso e aplicar no nosso território. Esse é o nosso papel”, concluiu Tipuici.

Desde 2020, RCA e OPAN são parceiras em iniciativas de formação sobre clima e processos de incidência internacional com povos indígenas.

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