Da amazônia para o mundo: Indígenas de cinco estados da Amazônia participam de seminário sobre incidência internacional sobre clima.

Texto de Andreia Fanzeres / OPAN

A imagem das atuais 197 flâmulas de países membros das Nações Unidas pertencentes à Convenção Quadro sobre Mudança Climática (UNFCCC, na sigla em inglês) suscitaram uma pergunta provocadora numa turma de indígenas reunida em São Paulo na última semana de maio. “Cadê a bandeira do meu povo?”. Afinal de contas, a última Conferência do Clima realizada na cidade escocesa de Glasgow (COP26) foi marcada não apenas por uma presença indígena maciça, mas também pelo reconhecimento público do papel central do modo de vida desses grupos e de seus territórios na garantia do equilíbrio climático global.

Apesar de recentes avanços, o caminho para que os povos indígenas no mundo adquiram um maior protagonismo nas negociações sobre clima ainda é desafiador. E para compreender as oportunidades de incidência internacional nove lideranças de cinco estados da Amazônia engajaram-se em um seminário promovido pela Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e pela Operação Amazônia Nativa (OPAN).

Num grupo pequeno, foi possível discutir sobre a crise climática e o regime jurídico internacional com a colaboração de Stela Hershmann, do Observatório do Clima (OC). Ela também situou os participantes sobre o que avançou e o que emperrou na última COP, apontando para os próximos passos do processo de negociação na Conferência de Bonn, chamada de etapa interseccional, que acontecerá na primeira semana de junho, na Alemanha.

“Para mim, foi muito importante entender o que significou essa ‘pedalada climática’[1] que o governo brasileiro fez na COP26”, disse Luene Karipuna. A ‘pedalada climática’ foi uma estratégia em que o Brasil prometeu compromissos climáticos supostamente mais ousados, mas que na prática representariam uma regressão na ambição das metas do país na Convenção do Clima, resultando numa emissão adicional de 400 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e) em relação à meta nacional anunciada em 2015 por Dilma Rousseff. “Infelizmente essa informação sobre a pedalada não chega para as comunidades”, comentou Luene.

Nove lideranças de cinco estados da Amazônia engajaram-se em um seminário promovido pela RCA e pela OPAN. Foto: Patrícia Zuppi/RCA

Como comunicadora indígena, a jovem lembrou a avalanche de fake news que aterrissam nos territórios e que cada vez mais é importante apostar nos mecanismos de cada povo na transmissão de conhecimento entre gerações para conseguir trabalhar tecnicamente a pauta de clima. “A gente passa informação através das nossas histórias, como falou nosso parente Tapayuna”.

Yaiku Suya Tapayuna, que participará pela primeira vez de uma Conferência da UNFCCC em junho, compartilhou com outros representantes indígenas do Acre, de Mato Grosso, do Amazonas, de Roraima e do Amapá a luta pelo reconhecimento de seu território ancestral. Contou também histórias dos mais antigos que têm a ver com o modo como os diversos povos indígenas se orientam pela natureza e percebem os sinais de que ela está mudando rapidamente. “Quando eu era criança, minha mãe dizia que era para eu não brincar de pegar as borboletas porque elas fazem um trabalho importante. Uma borboleta é leve e frágil, mas várias juntas constroem uma forquilha para segurar o céu e não o deixar cair na cabeça da gente. Mas hoje, tem bem menos borboletas do que antes”, relatou.

Para a experiente Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que há quase uma década acompanha de perto a agenda de clima internacional representando o Brasil, a compreensão sobre a ciência é a base para levar os povos indígenas a uma condição de paridade no debate sobre clima. “Se você não entende tecnicamente o que os cientistas estão dizendo, não é possível fazer um diálogo com o nosso conhecimento tradicional”, afirma.

Para ilustrar como essa relação entre as iniciativas locais interagem com a discussão climática global, o CIR foi convidado a expor sua experiência nos trabalhos ligados à mitigação e adaptação climática durante o seminário. “Temos que chegar até as bases e falar claro com elas. O aumento da temperatura e a luta para segurarmos o aquecimento a 1,5 grau e meio acima dos níveis pré-industriais nada mais é do que cuidarmos da febre da Terra. Temos que combater isso”, exemplifica a jovem advogada do CIR, Jessica Wapichana.

Ela e Sineia demonstraram, com diversos exemplos, que o segredo tem sido trabalhar arduamente na implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), que neste mês de junho completa 10 anos no Brasil, imprimindo nessas ações um enfoque estratégico na questão climática e lutando para que cada vez mais recursos do financiamento climático sirvam à implantação dos planos de gestão nas terras indígenas.

As iniciativas de apoio a bancos de sementes tradicionais, ao registro da perspectiva feminina sobre as mudanças climáticas, o investimento no trabalho das brigadas indígenas num ambiente mais quente e extremo e o programa de energia sustentável para comunidades de Roraima foram outros tantos exemplos de como os trabalhos locais se conectam diretamente com os temas discutidos nas altas esferas da UNFCCC, como a recém criada Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês). Esse espaço, que tem como pilares o apoio à troca e valorização de conhecimentos tradicionais, a construção de capacidades de envolvimento e a facilitação de políticas e ações sobre mudanças climáticas, será o foco de atenção do grupo de indígenas do Brasil na Conferência de Bonn.

Na preparação para acompanhar esse processo, os participantes do seminário revisaram algumas das recentes conquistas do movimento indígena internacional na consolidação de espaços de discussão e tomada de decisão no âmbito das Nações Unidas, aprimorando-os e tornando-os cada vez mais democráticos e efetivos. Além da plataforma, muito se falou sobre o Caucus Indígena, formado por representantes indígenas do mundo inteiro que discutem e implementam estratégias de participação ativa na UNFCCC. “O mais importante é fortalecer os povos indígenas com oportunidades de formação para estarmos mais nesses espaços de incidência”, avisa Sineia. Nesses espaços em que se discutem profunda e tecnicamente temas duros como financiamento climático, agenda de adaptação e outros, é preciso investir para incidir, como continua Sineia. “Ou você sabe ou vai ser engolido pelas agendas”.

De Mato Grosso, Eliane Xunakalo e Kaianaku Kamaiurá, assessoras da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) trouxeram bons casos sobre o que já sabem e o que ainda é lacuna para aprimorar a incidência na agenda de clima nacional e internacionalmente. Segundo Eliane, todo o processo de inserção dos indígenas de Mato Grosso no Programa Redd For Early Movers (REM-MT) ensinou sobre negociação dessa agenda mais técnica sobre clima. “Em Mato Grosso, o estado costuma definir uma meta e não conversa conosco para construir as políticas públicas, mas para atrair mercados verdes precisa dos povos indígenas”, relata. “A gente não participa das discussões sobre mercado de carbono. Precisamos aprender mais sobre isso, pois o que temos visto cada vez mais são esses cowboys do carbono pelas aldeias”, conta Kaianaku.

Para Eldo Shanenawa, da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), é preciso equilibrar o papel e os investimentos destinados aos povos indígenas para que sua contribuição ajude realmente a enfrentar o aquecimento do planeta. “Quem faz menos [pelo clima] ganha mais. Quem faz mais, ganha menos. Nós somos vida. E salvamos vida pela sabedoria, conhecimento, vivência e cultura”, diz Eldo. “Nosso desafio maior é tecer conjuntamente uma linha estratégica que parta das realidades, dos saberes, das necessidades e expectativas das comunidades e organizações de base da Amazônia, com ênfase no protagonismo indígena. É favorecer que suas vozes, iniciativas e alertas alcancem as instâncias de negociação e decisão sobre políticas, acordos e financiamentos internacionais de clima”, explica Patrícia Zuppi, da RCA.      

Organizações denunciam fechamento de espaços de participação a indígenas no Brasil

Pronunciamento da APIB, Iepé, RCA e Raça e Igualdade, enviado ao Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, tratou do desmantelamento de direitos fundamentais dos povos indígenas

21ª Sessão do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas (2022) / 25 de abril – 6 de maio

 A participação política da sociedade civil nas instituições públicas e nos espaços decisórios do poder é uma prerrogativa constitucional que vem sendo negligenciada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Hoje não há mais canais de diálogo entre os representantes dos povos indígenas e os diferentes órgãos governamentais.

É este cenário preocupante que foi denunciado pelo pronunciamento O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas do Brasil, enviado à ONU pelo Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, que tem o status consultivo no ECOSOC, com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e Instituto Internacional de Raça, Igualdade e Direitos Humanos. 

O documento foi enviado em razão do 21o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, que acontece entre os dias 26 de abril e 6 de maio em Nova Iorque, e reuniu diversos representantes de povos indígenas, da sociedade civil e dos Estados membros da ONU.

O pronunciamento destaca que o presidente desmantelou a arquitetura institucional dedicada à promoção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, enfraqueceu os órgãos da administração federal e cortou seus orçamentos. O resultado disso é o abandono de políticas governamentais que implementaram direitos em áreas como saúde, educação, cultura, ordenamento do território, proteção de terras indígenas.

>> Leia mais sobre os outros pronunciamentos enviados ao Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas

“Por decreto, o presidente extinguiu todos os conselhos e colegiados vinculados à administração pública federal, afetando praticamente todos os espaços de participação cidadã relacionados às políticas indigenistas. O Conselho Nacional de Política Indigenista, a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, a Comissão Gestora da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas e o Colegiado Setorial de Culturas Indígenas foram extintos e deixaram de funcionar. Não há mais espaços oficiais de diálogo com os povos indígenas”, diz um trecho.

Já em outro parágrafo, o pronunciamento lamenta o retrocesso pelo qual o nosso país passa e pontua que estão enfraquecidas ou até extintas políticas que, no passado, eram consideradas de ponta. Muitas delas foram construídas de forma participativa com representantes dos povos indígenas voltadas à gestão territorial e ambiental, a programas de educação escolar bilíngue e intercultural, a ações de promoção da cultura, a atenção primária à saúde indígena e à proteção de povos em contato recente e isolamento voluntário. “A extinção desses conselhos e colegiados faz parte de uma orientação governamental de restringir todas as formas de ativismo popular e participação social no país, reduzindo o espaço cívico no Brasil.”

“O governo do presidente Jair Bolsonaro declarou uma verdadeira guerra contra os povos indígenas, contra a integridade de seus territórios tradicionais e contra seus direitos constitucionais.”

“Contrário a qualquer forma de participação social e popular, o governo brasileiro restringe o exercício político da cidadania fechando espaços cívicos, afastando aqueles que poderiam monitorar e denunciar os abusos e retrocessos que ocorrem no país.”

Indígenas e sociedade civil denunciam à ONU ameaças a seus povos

Dadá Baniwa e Maurício Ye’kwana estão entre os líderes que enviaram pronunciamentos pedindo que a ONU cobre do governo brasileiro ações imediatas para proteger os povos indígenas

“O ouro do Brasil está banhado em sangue. Isso é fruto da ganância, das formas predatórias de desenvolvimento e dos retrocessos e ameaças que ocorrem hoje no Brasil em relação aos direitos constitucionais indígenas.” Esse é um trecho da declaração de Maria do Rosário Piloto Martins, conhecida como Dadá Baniwa, apresentada no 21o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, que acontece entre os dias 26 de abril e 6 de maio em Nova Iorque.

Dadá é coordenadora de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas de Rio Negro (FOIRN) e foi uma das muitas lideranças que chamaram a atenção da ONU para os retrocessos e ameaças aos direitos dos povos indígenas no Brasil diante do atual governo.

O Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, que tem o status consultivo junto ao ECOSOC, e a Rede de Cooperação Amazônica (RCA) apoiaram os pronunciamentos, junto a organizações parceiras. Além do que foi feito por Dadá, também destacamos a declaração de Maurício Tomé Rocha, da diretoria da HAY – Hutukara Associação Yanomami, membro do Povo Ye’kwana,  que vive na Terra Indígena Yanomami. 

Também se manifestaram em pronunciamento conjunto a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Instituto Raça e Igualdade e Direitos Humanos, que denunciaram, juntamente ao Iepé e à RCA, a extinção de espaços de participação social indígena nas políticas indigenistas, e a inexistência de canais de interlocução entre povos indígenas e órgãos federais, no pronunciamento “O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indigenistas do Brasil”. 

Outro tema levado para o Fórum Permanente da ONU foi o descumprimento da obrigação do Estado brasileiro em consultar povos e comunidades indígenas quando medidas administrativas e legislativas possam afetar seus modos de vida e seus direitos, no pronunciamento denominado “Pela efetivação do direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado no Brasil”. 

A seguir, detalhamos esses importantes documentos.

Violência contra as mulheres e crianças

Dadá fez questão de lembrar à ONU que na mesma semana em que a reunião acontecia, em Roraima, o povo Yanomami denunciava o estupro e assassinato de uma menina de 12 anos vítima da invasão de garimpeiros. “Nossos territórios clamam por socorro, pois estão sendo invadidos, violados, ameaçados pela mineração e pela exploração ilegal de seus recursos naturais”, afirmou.

“A resistência do governo à demarcação das terras indígenas, somada ao incentivo do Estado brasileiro a grupos criminosos de garimpeiros, grileiros e madeireiros na invasão de territórios tradicionais, enseja uma série de ataques diretos à vida de mulheres e meninas indígenas”, completou.

Em seu pronunciamento, Dadá também pediu que os ​​membros do Fórum Permanente, o Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas e o Relator Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas recomendem ao governo brasileiro:

 • Ações emergenciais para garantir a segurança das mulheres indígenas dentro e fora de suas comunidades;

• Medidas emergenciais para desintrusão e proteção de nossos territórios invadidos;

• Retorno às políticas de demarcação de terras indígenas para lidar com crimes perpetrados por garimpeiros, caçadores, madeireiros, pecuaristas e outros invasores;

• Garantir o cumprimento dos direitos constitucionais, incluindo o consentimento livre, prévio e informado;

• Promover a participação das mulheres indígenas nos processos de consulta e consentimento e o respeito aos protocolos autônomos de consulta desenvolvidos pelos povos indígenas.

Ações contra o garimpo ilegal

Maurício Ye’kwana também destacou em seu pronunciamento o avanço da invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. Apesar de estar no coração da floresta amazônica e ser uma das maiores Terras Indígenas demarcadas do mundo, a atividade ilegal teve um crescimento de 495% na região.

“Enquanto isso, tramitam no Congresso brasileiro projetos de lei, como o PL 191 e o PL 490, que pretendem legalizar o garimpo em Terras Indígenas e enfraquecer o grau de proteção aos direitos dos povos indígenas, reconhecidos constitucionalmente e internacionalmente. Se essas iniciativas legislativas prevalecerem, as graves violações de direitos humanos dos povos indígenas do Brasil apenas se farão agravar”, disse.

Ele solicitou ao Fórum das Nações Unidas que recomende ao governo brasileiro que conduza com celeridade investigações sobre organizações criminosas que atuam com a cadeia do ouro, promova a imediata retirada de invasores nos territórios indígenas, com operações periódicas de fiscalização, inutilize todo o maquinário flagrado e proteja as comunidades indígenas ameaçadas pelos invasores com suas atividades ilegais.


Direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado

Assinado pelo Iepé e pela RCA, a declaração Pela efetivação do direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado no Brasil, teve como objetivo destacar à ONU que o “Estado brasileiro segue descumprindo seu dever e violando o direito dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de participarem de decisões que afetem suas vidas e direitos”. 

Segundo o documento, diversas obras e empreendimentos seguem sendo planejadas e executadas sem a observância do direito de esses povos serem consultados, impedindo sua participação social em decisões que afetam seu futuro. 

“O dever de consulta tem sido visto como mera formalidade burocrática em processos de decisões já tomadas. Assim, estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas, linhas de transmissão, atividades minerárias e outros são licenciados e construídos sem nenhum tipo de consulta a povos indígenas afetados, mesmo nos casos em que o projeto é implementado dentro das terras indígenas. É o caso do projeto de lei 191/2020 que pretende regulamentar a mineração em Terras Indígenas, apresentado pelo Governo brasileiro ao parlamento, sem consulta aos povos indígenas.”

No pronunciamento, as organizações salientaram que os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, exercendo a  autonomia e autodeterminação a que tem direito, estão elaborando seus próprios protocolos de consulta e consentimento. Esses são instrumentos inovadores, em que esses povos expressam sua boa fé para o diálogo com o governo. Neles, explicitam ao governo o tempo, as formas, os locais e as pessoas certas que devem ser acionadas para participarem de processos de Consulta Prévia, Livre e Informada.  O Brasil registra hoje mais de 60 Protocolos Autônomos elaborados. 

Ao final, o pronunciamento solicita que o Fórum Permanente para Assuntos Indígenas recomende ao governo brasileiro:

  • Reconhecer sua obrigação de consultar povos indígenas e comunidades tradicionais, e obter seu consentimento, conduzindo processos de consulta de boa fé, prévia e culturalmente adequada antes de tomar qualquer medida legislativa ou administrativa que possa afetá-los.
  • Reconhecer a livre determinação e a autonomia dos povos indígenas e sua disposição para o diálogo de boa fé com o Estado, respeitando seus Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado e seu caráter vinculante para os processos de consulta prévia.

>> Leia aqui a notícia sobre o documento “O Fechamento dos Espaços Indígenas de Participação e Controle Social nas Políticas Indígenas do Brasil 

RCA lança novo livro sobre Protocolos de Consulta durante o ATL 2022

Texto Lucas Gomes/RCA

A Rede de Cooperação Amazônica (RCA) lançou, no último dia 12 de abril, durante as atividades do Acampamento Terra Livre 2022 (ATL 2022) seu novo livro sobre Protocolos de Consulta Prévia.

Intitulado Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia, o livro resulta de um estudo comparativo sobre a iniciativa de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais destes quatro países em elaborarem protocolos de consulta e indicarem um caminho para o diálogo com os Estados Nacionais quando medidas administrativas e legislativas possam afetar seus direitos.

Num exercício de autodeterminação, esses povos sistematizaram regras, princípios e procedimentos relacionados ao modo como consideram adequados a realização de processos de consulta, visando a obtenção de seu consentimento.

O livro apresenta reflexões sobre os desafios presentes na elaboração e implementação de protocolos autônomos de consulta e consentimento prévio, livre e informado, para a efetivação de seu direito de participação em decisões públicas que lhes afetem diretamente.

O lançamento do livro ocorreu na Tenda da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT) no Acampamento Terra Livre (ATL) e contou com a participação de várias lideranças indígenas da Amazônia brasileira, numa grande roda de conversa em que puderam relatar experiências sobre a elaboração e utilização de seus protocolos de consulta, bem como sobre experiências negativas de empreendimentos que afetaram seus territórios sem que houvesse processos de consulta.

O lançamento do livro contou com a mediação de Biviany Garzón, coautora do livro e advogada do Instituto Socioambiental (ISA), e de Patricia Zuppi, assessora da secretaria executiva da RCA. Uma breve apresentação do conteúdo do livro foi feita por Biviany, que salientou que a proposta do livro era trazer experiências de vários países do continente americano que inspirassem outros povos indígenas do Brasil que ainda não elaboram seus próprios protocolos. Ela afirmou que os protocolos autônomos são um exercício do “direito a permanecer e a continuar a ser indígena, para poder fazer as suas escolhas do presente e do futuro”.

Em seguida foi aberta uma roda de conversa em que diferentes lideranças indígenas presentes no evento compartilharam as suas experiências na elaboração de protocolos de consulta e consentimento. Entre os povos que elaboraram em anos recentes seus próprios protocolos, falaram lideranças dos povos Wajãpi e Karipuna do Estado do Amapá, Ye’kwana da Terra Indígena Yanomami e Kaiabi, Suiá, Yawalapiti e Waurá da Terra Indígena do Xingu, no Estado de Mato Grosso.

O Agente Socioambiental Indígena Sakyry Waiãpi apresentando o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi
Amairé Kaiabi Suiá, Coordenadora de Território da ATIX Mulher, que participou dos debates no processo de construção do Protocolo do Xingu
Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, compartilha como foi a elaboração do Protocolo Yanomami e Yek’wana

Simbolicamente, o primeiro depoimento compartilhado foi de lideranças do povo Wajãpi, que foi o primeiro povo indígena do Brasil a elaborar, em 2014, seu protocolo de consulta.  As lideranças Wajãpi ressaltaram a importância que conferiu a realização deste protocolo no contexto de constantes ameaças e iniciativas governamentais que não consultam os povos indígenas e que agridem seu território. João Paulo Wajãpi, representante da coordenação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), explicou que o protocolo é necessário porque as propostas do governo podem “afetar o modo de vida dos Wajãpi”. O Agente Socioambiental Wajãpi, Sakyry Waiãpi, esclareceu que através de seu Protocolo os Wajãpi indicam como organizam seu sistema de governança e as formas de representação dos cinco subgrupos Wajãpi que vivem na Terra Indígena Wajãpi, no Amapá. De acordo com o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, um único cacique não pode responder por um processo de consulta que envolve seu território. Mas as consultas devem ser realizadas conforme as estruturas e etapas indicadas neste documento.

Já as lideranças do Xingu ressaltaram os desafios trazidos pela realização de um protocolo único que abrange um território no qual convivem 17 povos de línguas e etnias diferentes.  Um longo processo de reuniões locais foi realizado até que os povos do Xingu pudessem estabelecer diretrizes comuns indicadas em seu Protocolo para a realização de consultas no Território Indígena do Xingu.

Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, mencionou a importância jurídica de ter um protocolo de consulta prévia no contexto atual de ameaças, invasão e ataques de garimpeiros. Maurício, destacou, também, o caráter complexo que foi a realização de um protocolo de consulta prévia na maior terra indígena do país, a Terra Indígena Yanomami, com mais de 9.600.000 de hectares. Para enfrentar esses desafios e coordenar as ações e tomadas de decisão numa terra tão grande, o líder Ye’kwana explicou que foi criado o Fórum de Lideranças Indígenas Yanomami e Ye’kwana.

Luene Karipuna, representante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), explicou que o Protocolo de Consulta dos Povos do Oiapoque, reconhecido pelo Ministério Público Federal do Amapá, deixa claro que uma reunião isolada não pode ser considerada como consulta. O Protocolo foi elaborado conjuntamente pelos quatro povos que vivem nas Terras Indígenas da região e indica a necessidade de realização de um processo que envolve o diálogo e a criação de consensos através da participação ampliada das comunidades, organizações indígenas e do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO). Como exemplo de aplicação do Protocolo, Luene mencionou a situação atual de proposta de instalação do lixão do município de Oiapoque para as proximidades das Terras Indígenas, podendo afetar as cabeceiras dos três rios que banham seus territórios. O processo foi paralisado pelo MPF, exigindo a realização de um processo de consulta, de acordo com o Protocolo.

Amairé Kaiabi Suia, que é coordenadora de Território da ATIX Mulher e participou do processo de discussão e construção do Protocolo do Xingu, lembrou a relação entre protocolos de consulta e planos de gestão territorial e ambiental, dois instrumentos que contribuem para a gestão socioambiental de seus territórios.

Após as apresentações das lideranças de povos que já elaboraram seus Protocolos, representantes de outros povos participantes da roda de conversa, interessados pelo assunto, fizeram várias perguntas a respeito dos passos a seguir para a realização de seus próprios protocolos e dos desafios para implementá-los na prática.

Edilene Barbosa, representante da OPIAC, Biviany Garzon do ISA, coautora do livro, e Dalson Karipuna da APOIANP

A representante da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), Edilene Barbosa, falou da necessidade de instaurar um diálogo dentro da aldeia antes da aceitação de um projeto proposto pelo governo, mencionando que protocolos permitem entender com clareza tanto o lado positivo quanto negativo desses projetos, organizando a comunidade para discutir e tomar uma posição em conjunto perante o governo.

A roda de conversa foi concluída por Patricia Zuppi, que salientou a importância dessas conversas para a troca e compartilhamento de experiências e para fortalecimento das iniciativas indígenas de autonomia e gestão territorial.

Ianukula Kaiabi Suia (ao centro), presidente da ATIX, com representantes do Xingu que participaram do lançamento do livro

Clique aqui para acessar a versão digital do livro Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia, publicado pela RCA em 2022. O livro é de autoria de Priscylla Joca, Biviany Rojas Garzón, Liana Lima da Silva, Rodrigo Magalhães de Oliveira e Luís Donisete Benzi Grupioni. Com capa de Silia Moan e Arte de Renata Alves.

Nova publicação da RCA sobre Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: reflexões sobre os protocolos de consulta em quatro países

Experiências no Brasil, Belize, Canadá e Colômbia dão subsídios à análise dos avanços na criação e implementação dos documentos, cruciais a povos indígenas e tribais

Texto: Thaís Herrero

Desde 2014, povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais têm construído seus Protocolos Autônomos, que são hoje cruciais para que se coloquem como agentes na defesa de seus direitos sobre decisões de governos e empresas que afetam diretamente seus modos de vida e territórios.

É sobre isso e sobre as reflexões, desafios e lições relacionados à elaboração e implementação dos protocolos que trata o novo livro da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), chamado Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia”.

A publicação reúne exemplos dos quatro países e foi elaborada a partir de pesquisa bibliográfica e documental de Priscylla Joca, Biviany Rojas Garzón, Liana Lima da Silva, Rodrigo Magalhães de Oliveira e Luis Donisete Benzi Grupioni. No total, foram analisados 23 protocolos do Brasil, 7 do Canadá, 5 da Colômbia e 1 de Belize.

Os protocolos são uma manifestação da autodeterminação dos povos, que sistematizam normas, regras, princípios e procedimentos relacionados ao modo como cada um considera adequada, oportuna, honesta e respeitosa a realização da consulta por parte de empresas e governos, até a obtenção de seu consentimento.

Os quatro países foram escolhidos devido ao número de protocolos, a diversidade de sistemas jurídicos, de normas e grau de implementação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. Além disso, esses países estão localizados no Norte e no Sul globais e possuem contextos sociais, políticos e econômicos diferentes, permitindo a reflexão sobre a produção e implementação dos protocolos em distintas realidades geopolíticas.

No Brasil, foram os povos Wajãpi, no Amapá, e Munduruku, no Pará, que iniciaram a construção dos seus Protocolos Autônomos, sendo seguidos por uma série de iniciativas de  outros povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Até hoje, contabilizamos cerca de 60 Protocolos Autônomos de povos e comunidades tradicionais em nosso país. 

“Nós resolvemos fazer este documento porque muitas vezes vemos que o governo quer fazer coisas para os Wajãpi, mas não pergunta para nós o que é que estamos precisando e querendo. Outras vezes o governo faz coisas no entorno da Terra Wajãpi que afetam nossos direitos, mas também não pergunta nossa opinião. (…) Nós achamos que o governo deve escutar nossas preocupações, ouvindo nossas prioridades e nossas opiniões antes de fazer o seu planejamento. Não achamos bom quando o governo chega com projetos prontos para nós, com dinheiro para gastar em coisas que não são nossas prioridades.”

Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, 2014

Se de um lado vemos os esforços para a implementação dos acordos, por outro, também vivenciamos um período de retrocessos nos direitos socioambientais e ataques aos direitos constitucionais desses povos. “Diante desse cenário, nada favorável aos direitos humanos, os protocolos surgem justamente como um movimento dos próprios povos que reivindicam respeito a suas normas e regras internas e sua organização social própria”, diz Luis Donisete Grupioni, secretário executivo da RCA e coordenador executivo do Instituto Iepé e um dos autores do livro. 

“Eles passam a apresentar ao Estado um instrumento jurídico que reforça a re-existência nos seus territórios. É uma forma de reagir à invisibilidade política e jurídica que recai sobre os povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Tal como tem sido elaborados, os protocolos são uma manifestação de boa fé destes povos para com o Estado, propondo uma caminho efetivo para o diálogo intercultural, necessário quando o Estado pretende realizar algum empreendimento em seus territórios, além de um exercício importante de autodeterminação e autonomia política”, completa.  

Convenção 169 sob a mira dos retrocessos 

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais é o tratado de maior importância para esses povos por romper e superar o paradigma assimilacionista até então vigente. Ela consolida os direitos coletivos de autodeterminação e autorreconhecimento, direitos territoriais, direitos de participação e direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. 

Ainda assim, a atual corrente de retrocessos, não deixou a Convenção 169 de fora. Em 2021, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 177/2021), na contramão dos compromissos internacionais que o país assumiu, ameaçou denunciar a Convenção 169. Esse livro pode, no entanto, jogar luz à importância de se estabelecer e implementar processos de consulta, assim como efetivar o compromisso do Estado brasileiro em  consultar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais quando medidas administrativas possam impactar seus territórios e seus direitos. 

>>Leia mais: Em busca do bem-viver: como os indígenas estão fazendo seus planos de gestão territorial

No livro, os autores analisam as propostas de regulamentação do direito à consulta no Brasil e mostram como os protocolos de consulta são uma alternativa eficaz à uma regulamentação restritiva, evidenciando que o direito à consulta, como direito fundamental, é autoaplicável.

Ferramenta para novos protocolos

Outro objetivo da publicação é fornecer elementos e subsídios para povos e comunidades interessados em elaborar seus Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento no Brasil e para organizações que possam assessorá-los nesse processo. Também oferece informações aos países e interessados em demandar processos de consulta e consentimento livre, prévio e informado junto a povos indígenas e tribais de maneira adequada, oportuna, respeitosa, honesta e de boa-fé. 

“Este livro nos leva a refletir que a elaboração dos protocolos de consulta se constitui em processos ricos de diálogos, negociações e aprendizagens internas realizados pelos povos e comunidades  que decidem desenvolver um protocolo autônomo”, afirma Priscylla Joca, que também escreveu no livro e é doutoranda em Direito na Universidade de Montreal (Canadá).

Pryscilla destaca que, durante a elaboração dos protocolos, povos e comunidades se apropriam do conteúdo do direito à consulta e ao consentimento enunciado em normas nacionais e internacionais e interpretam essas normas a partir de suas próprias tradições sociais e culturais, de seus direitos próprios e de suas instituições políticas. Assim, ressignificam e reafirmam normas e acordos sociopolíticos internos a fim de fortalecer-se coletivamente. 

“Ao final, os protocolos são o resultado desses processos interculturais e jusdiversos e são apresentados para o Estado e outros atores interessados como um instrumento de afirmação da autodeterminação. Assim, o processo de constituição e desenvolvimento de um protocolo autônomo, ou as discussões sobre normas e procedimentos internos de consulta e consentimento, faz-se essencial para a posterior realização de uma consulta adequada e significativa,” explica.

Baixa baixar a publicação:

Reunião da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas abre trabalhos na COP26 com desafio de ampliar representatividade e ver mais direitos garantidos na Convenção do Clima

Andreia Fanzeres/OPAN
com colaboração técnica de Patrícia Zu
ppi/RCA

Um dos desafios da LCIPP é assegurar que os povos indígenas participem, em suas regiões, da elaboração e implementação de ações, políticas e mecanismos de financiamento climático, a partir do entendimento de que eles fazem parte da solução para a crise.  Foto: Bruno Taitson/ WWF Brasil

Mais uma vez, a programação oficial da COP26 começou com a agenda dos povos indígenas. Entre os dias 28 e 30 de outubro aconteceu em Glasgow, de forma híbrida, a 6a reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC). Por três dias, discutiu-se sobre as ações realizadas no primeiro ciclo de atividades do órgão, cuja implementação se deu de 2019 a 2021, mesmo com as dificuldades impostas pela pandemia e diante do ineditismo da inserção das perspectivas indígenas no contexto da Convenção. E, exatamente por causa dessa responsabilidade, a reunião terminou com um acalorado debate, que envolveu também observadores que queriam ver mais senso de urgência refletido em um posicionamento da Plataforma para influenciar as negociações sobre a implementação do Acordo de Paris.

A Plataforma, criada como um mecanismo do Acordo de Paris, firmado em 2015 na COP21, e viabilizada por meio do estabelecimento de um Grupo de Trabalho Facilitador para sua implantação na COP24 em 2018, é uma instância única na UNFCCC porque tem seu órgão de implementação com composição paritária entre representantes indígenas e dos países membros. Guarda as funções de valorizar os conhecimentos tradicionais, ampliar o engajamento dos povos indígenas e comunidades locais nos processos da Convenção, bem como promover a inclusão de distintos sistemas de conhecimentos na elaboração de ações e na construção de políticas para enfrentar as mudanças climáticas.

Em um gesto de apoio e respeito por esse espaço, a diplomata mexicana Patrícia Espinosa, secretária-executiva da Convenção, abriu os trabalhos da Plataforma associando-os à necessidade de mais avanços nesta COP26. “Estamos muito longe de onde deveríamos estar. Isso é um fato. A mudança não vai acontecer de uma hora pra outra. E precisamos tomar as decisões certas agora. Temos o caminho das NDCs (metas de cada país para redução de emissões) e temos a ciência, por isso eu peço o apoio e o engajamento de vocês”, reforçou. Patrícia ainda ressaltou o papel dos povos indígenas no contexto das mudanças climáticas. “É lamentável que as alterações climáticas afetem a vida dos povos indígenas, apesar de serem eles os que mais contribuem para diminuir as emissões vivendo em harmonia com a natureza. Os povos indígenas ajudam a salvaguardar 80% da biodiversidade remanescente do planeta e representam apenas 6.2% da população global”, disse. 

O maior engajamento dos povos indígenas e comunidades tradicionais na agenda climática, para além dos governos nacionais e locais, está no cerne das atividades concebidas pela Plataforma até agora. E, por seu caráter desafiador, consta também como um dos principais eixos de ação no Plano de Trabalho da Plataforma para o próximo ciclo de três anos, que precisa ser apreciado pelo Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico (Substa, na sigla em inglês) e validado pelos Estados que compõem a convenção em Glasgow nesta COP26. 

Surpreendendo alguns membros da Plataforma, o presidente da COP26, Alok Sharma, fez questão de visitar a reunião, se disse comprometido com a amplificação das vozes dos povos indígenas e perguntou o que se espera dele nas próximas semanas. A resposta que recebeu foi a de pressionar os estados para esse mesmo compromisso. Dalee Dorough, representante dos povos indígenas do Ártico, aproveitou a oportunidade de dizer diretamente a Sharma como os impactos das mudanças climáticas em sua região já têm sido imensuráveis, que a adaptação é difícil e que o mundo precisa entender que os povos do Ártico têm “o direito ao gelo”. A reunião foi tomada de emoção em breves segundos de silêncio e reflexão. Dalee aproveitou para explicar a Sharma um pouco da atividade que co-liderou na implementação do primeiro plano de trabalho, justamente voltada à sensibilização de atores-chave sobre a importância dos povos indígenas no enfrentamento às mudanças climáticas. Sharma respondeu dizendo que entendeu o recado dado em alto e bom som e que passou a conhecer “a face humana das mudanças climáticas”, lembrando que nos últimos 9 meses visitou 35 países encontrando pessoas afetadas pelo desequilíbrio do clima.  

Hindou Ibraim, representante dos povos africanos e co-presidente indígena do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma, enfatizou em diversas oportunidades que o respeito ao direito à consulta e consentimento dos povos indígenas deveria constar nas recomendações de cada uma das atividades realizadas. “O resultado mais importante do nosso trabalho será ver as nossas recomendações sendo implementadas nos níveis nacionais e locais, em especial garantindo o direito à consulta e a consideração do conhecimento tradicional na construção das soluções. Meu alerta para os governos que estão aqui participando é como vão nos ajudar a implementar o plano de trabalho e não deixar os povos indígenas para trás. Vocês podem nos ajudar nesta COP26!”.

Contudo, quando se tentou materializar o apelo de Hindou em um caso concreto, as dificuldades ficaram ainda mais claras. A iminência da discussão sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris, que  regulamenta os mecanismos de mercado de carbono, e a preocupação sobre impactos e o acirramento das pressões aos povos indígenas caso não haja salvaguardas a seus direitos, aterrissou na reunião da plataforma. Em especial, o tema esquentou e dividiu opiniões depois que Andrea Carmen, representante indígena da América do Norte, propôs a redação de um posicionamento da Plataforma pela garantia de respeito aos direitos indígenas nesta discussão específica. Alguns membros e estados avaliaram que a Plataforma tem natureza técnica e esse tipo de manifestação seria inadequada. Outros, valendo-se da importância de abordagens sempre pautadas pela defesa dos direitos indígenas, argumentaram pela urgência de ações mais ambiciosas e contundentes para que haja a transformação necessária na conduta dos países. Tuntiak Katan, representante indígena da América Latina e Caribe, avaliou que se pode esperar os países avançarem pela via formal ou assumir que estamos numa emergência. “Essa COP poderia fazer a diferença. Temos que parar a destruição do planeta e não é mais hora de pensar se estamos de acordo se vamos viver ou não. Todos queremos viver”, falou. Assim como se deu anteriormente na complexa negociação para aprovação do texto de criação da Plataforma, em 2017 e 2018, quando algumas Partes traziam questionamentos ao texto proposto alegando preocupações acerca da “soberania nacional”, a discussão não chegou a um consenso e revelou o ambiente de pressões que determinam o sucesso ou o fracasso do lento processo de negociação na UNFCCC.

Desafios internos

Um dos desafios da Plataforma é assegurar que os povos indígenas participem em suas regiões da elaboração e implementação de ações, políticas e mecanismos de financiamento climático, a partir do entendimento de que eles fazem parte da solução para a crise climática. De acordo com Andrea Carmen, hoje só há dois países que têm mecanismos para incluir os povos indígenas no desenvolvimento das suas NDCs: Canadá e Nova Zelândia. “Precisamos pressionar para melhorarmos a inclusão dos povos indígenas nas ações nacionais”. Irina Barba, representante dos estados da região da América Latina e Caribe, ao falar sobre o mapeamento de mecanismos financeiros para garantir a participação indígena nas discussões sobre clima e implementar ações de mitigação e adaptação, fez um pedido para que os estados criem mecanismos efetivos, pois os que existem não atendem às necessidades específicas destes povos. 

Do ponto de vista do funcionamento da própria Plataforma, um observador lembrou da falta de representatividade das comunidades tradicionais. “Estamos preocupados porque o processo da plataforma está avançando sem uma representação das comunidades locais. Elas são coletivos que têm uma história em comum, em que os indivíduos se reconhecem como parte da coletividade e detém uma forma de se autogovernar”, disse Gustavo Sanches, do México. Ele requisitou diretamente espaço para as comunidades locais na LCIPP e ouviu da Secretaria da Plataforma, que assessora os trabalhos desta instância da UNFCCC, que os grupos precisam se credenciar e solicitar reconhecimento formal, mas não deu maiores detalhes sobre o processo. 

Ao mesmo tempo em que a colaboração ampla e qualificada de membros e observadores da Plataforma tem sido reconhecida como estratégica para seu êxito, as lacunas para os próprios indígenas seguem numerosas, como a participação das mulheres, de jovens, de representantes da Amazônia, bem como ajustes com relação ao fuso horário, em especial para o efetivo acompanhamento de comunidades do Pacífico, e a importância da tradução de documentos e transmissão de reuniões em mais idiomas. 

Esses pontos permearam os três dias de discussão e demonstraram que a presença em si dos povos na COP ou em encontros regionais e interseccionais nem sempre é a maior preocupação, mas a garantia de que a construção dos entendimentos da Plataforma consiga incorporar efetivamente as contribuições das regiões, de quem está no chão das aldeias e comunidades. Por este motivo, recebeu muitas críticas o mecanismo de revisão periódica conhecido como “global stoktake”, por adotar uma abordagem de difícil envolvimento indígena. 

Vicky Tauli-Corpuz, que de 2014 a 2020 foi Relatora Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, comentou que esse processo deve integrar efetivamente as vozes e os relatórios dos povos indígenas. “Isso significa que deve haver processos do nível local ao global para garantir que essas vozes sejam ouvidas e incluídas no relatório de avaliação. Se as Partes não incluírem essas vozes, relatórios independentes de povos indígenas devem ser aceitos. Nossa capacidade de fazer nossas próprias avaliações deve ser apoiada por meio de políticas, suporte técnico e finanças”, sugeriu.

Ao longo das próximas duas semanas em Glasgow a Plataforma de Comunidades Locais e de Povos Indígenas promoverá alguns eventos importantes, como uma mesa de diálogo entre povos indígenas e a presidência da COP26 (02/11), a reunião sobre conquistas da Plataforma em seu primeiro ciclo de dois anos de atividades (03/11), uma oficina com múltiplos atores-chaves sobre a Plataforma e o primeiro encontro anual de detentores de conhecimentos tradicionais (08/11). Em 2022, reuniões nas sete regiões socioculturais do mundo deverão eleger novos membros para a LCIPP, que serão os responsáveis por liderar a implementação do plano de trabalho para os próximos três anos. Eles assumirão sua gestão a partir de junho, quando ocorrerá a 7a reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma, na sede da UNFCCC, em Bonn, na Alemanha.  

Mais informações:

Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC: https://lcipp.unfccc.int/

Fórum Internacional de Povos Indígenas para Mudanças do Clima: https://www.iipfccpavilion.org/

Rede de Cooperação Amazônica (RCA): www.rca.org.br 

Operação Amazônia Nativa (OPAN): www.amazonianativa.org.br

Lideranças indígenas da RCA rumo à COP 26

A Rede de Cooperação Amazônica – RCA tem apoiado, desde 2015, a participação de lideranças indígenas nas Conferências Mundiais do Clima (as COPs, Conferências das Partes) e nas reuniões técnicas da Convenção da ONU para Mudanças do Clima (UNFCCC, sigla em inglês). Desde 2017 a RCA, representando as suas organizações membro, faz parte do Fórum Internacional de Povos Indígenas para Mudanças do Clima e tem participado do processo de implementação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, conforme mecanismo previsto no Acordo de Paris (COP21/2015).

Por Patricia Zuppi/RCA

Enquanto uma rede de cooperação formada por 14 organizações indígenas e indigenistas da Amazônia brasileira, a RCA tem buscado incidir e colaborar nas discussões e na formulação e implementação de políticas, programas e financiamentos que envolvam as questões ambientais e climáticas nas terras indígenas, promovendo maior participação e protagonismo de seus representantes.

Esta linha de atuação tem o foco na contínua capacitação e no apoio para a incidência de seus membros em espaços relevantes de discussão e negociação climática, com ênfase no monitoramento e no fortalecimento destes processos a partir das perspectivas, saberes e experiências produzidas no âmbito de suas organizações de base.

O contexto de rede favorece o intercâmbio e a difusão destas experiências locais e saberes articulados pelas organizações que a compõem, amplificando as oportunidades de intercâmbio, produção de conhecimento e incidência em prol dos povos indígenas da Amazônia.

Por isso, as delegações da RCA são formadas por aqueles representantes de suas organizações que atuam de forma relevante nesta temática e têm participado ativamente das pautas de incidência internacional.

Neste contexto, a RCA tem promovido ao longo dos anos a participação de seus membros nas Conferências do Clima (COPs), nas reuniões bianuais do Fórum Internacional de Povos Indígenas para Mudanças do Clima e nas pautas para elaboração e implementação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, conforme proposta pelo Acordo de Paris (COP21/2015).

Ainda em processo de construção, esta Plataforma se constituí como o principal mecanismo de participação de Povos Indígenas e Comunidades Locais na estrutura da Convenção do Clima (UNFCCC) e prevê três funções principais: intercâmbio de conhecimentos, ampliação da capacidade de engajamento de povos indígenas e comunidades locais nos processos da UNFCCC e a integração de diversos sistemas de conhecimento, práticas, inovações, bem como a participação nas ações, políticas e programas relacionados às mudanças do clima.

Diante da perspectiva de participação no processo de construção desta Plataforma, e com a Amazônia progressivamente ameaçada pelo desmonte das políticas ambientais e indigenistas no Brasil, sendo foco das discussões climáticas globais, a RCA tem investido esforços na qualificação e participação de suas lideranças indígenas de base para incidir neste contexto.

As experiências locais das organizações no que se refere à gestão ambiental e territorial das terras indígenas, bem como suas percepções e alertas, são contribuições fundamentais que embasam estes debates globais em prol da criação de novas soluções climáticas, pautadas pelo respeito aos seus direitos, saberes, necessidades e modos de vida tradicionais.

Este processo de incidência indígena na UNFCCC tem potencial, ainda, em médio e longo prazo, para articular resultados na formulação de ações, financiamentos e políticas globais que alcancem de fato as bases, a partir de suas perspectivas e de modo adequado às suas prerrogativas socioculturais.

Numa Conferência Climática em que um dos assuntos mais polêmicos é a regulamentação dos mercados de carbono, cujos encaminhamentos podem afetar e pressionar ainda mais os territórios indígenas da Amazônia, fica evidente a necessidade de participação e incidência indígena qualificada para os debates mais técnicos.

A delegação da RCA na COP 26, que acaba de chegar em Londres/Inglaterra, é formada por duas lideranças indígenas experientes em incidência internacional: Sinéia do Vale, do povo Wapichana, coordenadora de gestão territorial e ambiental do Conselho Indígena de Roraima-CIR, que tem participado desde 2010 das Conferências do Clima, e Maurício Y’ekuana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, que também acumula experiência de incidência em distintos Órgãos da ONU. Esta delegação conta com o apoio técnico e logístico da Secretaria Executiva da RCA para esta participação na COP26 e com o financiamento da Fundação Rainforest da Noruega, da Fastenopfer da Suíça e o apoio CAFOD.

Junto com Sinéia e Maurício viaja para Glasgow a jovem advogada indígena Jéssica Nascimento, também do povo Wapichana, gestora ambiental do CIR, que, com o apoio adicional da Nia Tero, compõe a delegação da RCA na COP 26.

O grupo somará esforços de representação e incidência na COP26 junto às outras lideranças indígenas apoiadas pela COIAB e APIB, configurando uma delegação indígena do Brasil com cerca de 40 pessoas. Destas, a RCA apoia, ainda, a participação na COP26 de mais duas mulheres do movimento indígena do Brasil, Alessandra Munduruku, da delegação da COIAB, e Célia Xakriabá, da APIB.

Formação “Povos Indígenas rumo à COP 26”

Num momento de agravamento das ameaças e pressões sobre os territórios indígenas e seus defensores, a maior delegação indígena do Brasil prevista nas Conferências do Clima tem se preparado para esta participação na COP26. Nos meses de setembro e outubro de 2021, a RCA realizou, em parceria com a APIB, COIAB, OPAN e Uma Gota no Oceano, a formação “Povos Indígenas rumo à COP26”, que contou com o apoio da Fundação Rainforest da Noruega, Fastenopfer da Suíça e Fundação Ford do Brasil. Para preparar as lideranças indígenas para a COP26 e para a VI Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) na UNFCCC, foram realizadas seis sessões virtuais com a participação de 12 renomados especialistas em Clima, indígenas e não-indígenas, que trataram das pautas mais relevantes em jogo nesta Conferência do Clima, assim como a própria estrutura de funcionamento das COPs e os espaços de incidência dos povos indígenas. Com a moderação de lideranças indígenas também especializadas no tema – Sonia Guajajara/APIB, Sineia Wapichana/CIR, Élcio Manchineri/COIAB, Dinamam Tuxá/APOINME e Francisca Arara/IMC Acre – cada sessão teve duração de duas horas e meia em que lideranças indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais, junto com os representantes de organizações parceiras puderam alinhar os conhecimentos sobre incidência internacional em Clima, e discutir sobre os temas em destaque.

Com enfoque nos processos de participação indígena na UNFCCC, a Formação contou, pela primeira vez no contexto dos povos indígenas do Brasil, com a participação especial de cinco convidados internacionais, que são notórios especialistas do Fórum Internacional para Mudanças do Clima. Entre eles, seu co-presidente Juan Carlos Jintiach/COICA e a co-presidente indígena do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma, Hindou Ibrahim, do Chad/África. Dennis Maierena, da Nicarágua, compartilhou o contexto histórico de incidência dos povos indígenas da criação da UNFCCC até a estruturação do Caucus Indígena e da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, Johnson Cerda/Conservação Internacional provocou um debate sobre a regulamentação do Artigo 6 pela perspectiva dos povos indígenas na garantia de direitos e Eileen Mairena apresentou um painel muito esclarecedor sobre os mecanismos de financiamento climático para povos indígenas e o Fundo Verde do Clima.

Dentre os especialistas não-indígenas convidados estiveram presentes o Prof. Paulo Artaxo do Instituto de Física da USP, membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC), Márcio Astrini, Secretário Executivo do Observatório do Clima e Fernanda Carvalho, gerente global de políticas climáticas da WWF Internacional.

Um mundo com febre

A Conferência Mundial das Nações Unidas para as Mudanças do Clima deste ano, COP 26, terá início oficial no dia 31 de outubro de 2021, na cidade de Glasgow, Escócia.

Num cenário mundial ainda pandêmico e com evidente aceleração dos eventos ambientais extremos provocados pelo aquecimento global, que demostram de forma trágica o insucesso até agora dos países membros da Convenção de Clima da ONU na implementação do Acordo de Paris (COP21/Paris,2015), a COP26 tem como meta prioritária que os Estados estabeleçam compromissos mais ambiciosos voltados às ações emergenciais para conter o aumento da temperatura do planeta.

Um mundo em colapso climático afeta a todos e, portanto, é um problema de todos. Deste modo, o Acordo de Paris destaca que todos devem estar envolvidos na solução desta crise climática global.

Se os povos indígenas e as comunidades locais nada têm a ver com as causas do aquecimento global desenfreado, pelo contrário, são os grupos que, dependendo da região do planeta, já enfrentam previamente os maiores impactos. Os territórios onde vivem tradicionalmente são as regiões onde se verificam as maiores florestas e biomas preservados do mundo.  E isso não é por acaso. Mas se deve aos seus distintos saberes e práticas tradicionais e suas concepções próprias de vida.

Até o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em sua sigla em inglês), Fórum mais relevante de cientistas mundiais, cujos relatórios embasam tecnicamente as negociações da Convenção Quadro da ONU para Mudanças do Clima (UNFCCC), já reconheceu que a floresta protegida e terras indígenas demarcadas são barreiras contra crise climática (Relatório Especial sobre fluxos de carbono relacionados a ecossistemas terrestres, 2019).

Comunidades que vivem em pequenas ilhas que estão desaparecendo com o aumento do nível do mar, outras que habitam territórios cujos lagos e rios secaram e são obrigadas a migrar em situação de alta vulnerabilidade, grupos de regiões polares em franco degelo, ou aqueles acometidos por incêndios incontroláveis, entre outros, já vivenciam na pele os impactos das mudanças do clima, tendo a sua sobrevivência física e cultural ameaça. Estes grupos têm muito a ensinar sobre preservação, resiliência e iniciativas de adaptação.

O texto do acordo climático vigente, o Acordo de Paris, apresenta 6 referências aos povos indígenas, com destaque para a garantia de seus direitos, e, finalmente, reconhece a necessidade de fortalecer os conhecimentos, as tecnologias, as práticas e os saberes dos povos indígenas e comunidades locais na elaboração de respostas para as mudanças do clima.

Este Acordo traz ainda uma novidade importante: a estruturação de uma Plataforma para o intercâmbio de conhecimentos, a ‘Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas” (LCIPP, sigla em inglês).

Antes da abertura oficial da COP26 ocorrerá, de 28 a 30 de outubro, a VI Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador desta Plataforma, órgão da UNFCCC instituído de modo inédito, com representação equânime entre representantes do países e dos povos indígenas das 7 sub-regiões socioculturais do mundo, para implementação desta Plataforma.

A previsão de pauta para esta reunião é a entrega dos resultados do Primeiro Plano de Trabalho, com 12 atividades iniciais para desenvolver a Plataforma no âmbito da Convenção do Clima (UNFCCC). As atividades deste Plano de Trabalho foram realizadas, apesar das limitações impostas pela pandemia de COVID19, de 2019 a 2021, por este órgão e com a colaboração do Fórum Internacional de Povos indígenas para Mudanças do Clima e demais steakeholders (partes envolvidas). Espera-se que ao longo das negociações previstas para a COP26, seja pactuado e aprovado um novo Plano Trienal de Trabalho para dar continuidade ao processo de implementação da Plataforma na UNFCCC.

A RCA, através da participação dos membros de suas organizações, tem participado e incidido nesta pauta da Plataforma e seguirá com esta agenda durante a COP26.

Sinéia do Vale/CIR, Viseni Waiãpi/Apina, Valéria Paye/COAIB, junto com Luis Donisete Grupioni e Patricia Zuppi, da Secretaria Executiva da RCA, na I Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, na sede da UNFCCC, em Bonn/Alemanha, junho de 2019.

Formação “Povos Indígenas rumo à COP26”: A luta é Global

Membros de organizações representativas dos povos indígenas nas discussões sobre clima resgatam histórico de conquistas e orientam lideranças do Brasil em curso de capacitação.

Por Andréia Fanzeres/OPAN

Conhecer a história da participação indígena na Convenção do Clima é se deparar com um percurso de luta e de crescente reconhecimento do papel estratégico das comunidades locais na mitigação ao aquecimento do planeta. Melhor ainda quando essa verdadeira aula é dada por dois experientes representantes indígenas, que em outubro engrandeceram a formação “Lideranças indígenas rumo à COP26”.  Com o tema “Povos Indígenas na incidência em Clima: da ECO 92 à Plataforma de Conhecimentos Tradicionais”: Dennis Mairena e Juan Carlos Jintiach.

A sessão começou com a fala de Dennis Mairena, engenheiro agrônomo nicaraguense, com mais de 40 anos de experiência profissional com povos indígenas na Nicarágua, Guatemala, Venezuela, Colômbia, Bolívia e Honduras, acompanha as negociações da Conferência das Nações Unidas para Mudanças do Clima (UNFCCC) há 13 anos e tem desenvolvido trabalhos sobre Consentimento, Livre, Prévio e Informado, além de outros com Fundo para Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe (FILAC), com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola da ONU (FIDA) e com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Com essa bagagem, Dennis falou didaticamente de todo o percurso de construção do arcabouço legal e diplomático das negociações sobre clima desde a Eco 92, passando pela COP15 de Copenhague, COP20 de Lima, e como os povos indígenas foram se organizando para galgar seu espaço nas convenções.

Há 13 anos, o engenheiro agrônomo indígena Dennis Mairena há 13 anos desenvolve trabalhos sobre Consentimento, Livre, Prévio e Informado

A compreensão sobre o jogo de forças e a formação de blocos de negociação dos países na Convenção também foi importante para situar que direcionamento os povos indígenas devem ter na construção de alianças até que seus direitos sejam devidamente garantidos no escopo das COPs. Nessa esteira, Mairena detalhou o quão importante têm sido os trabalhos do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (IIPFCC), uma plataforma de participação aberta aos povos indígenas do mundo que acompanham as negociações sobre mudanças climáticas na UNFCCC, chamada de Cáucus Indígena. “O fórum é convocado duas vezes por ano. Ele se organiza e nomeia seus próprios representantes, que vêm de sete regiões socioculturais no mundo. Ali são formados grupos de trabalho para preparação de declarações, conferências de imprensa, convites para negociadores se aproximarem de nós e discussão em plenária”, explicou Mairena. Ele frisou que o trabalho é voluntário e, por isso, depende do esforço de cada um e que a COP não é uma oportunidade de passeio. “Nossos representantes vão para trabalhar em função dos interesses dos povos indígenas do mundo porque as negociações são globais e não envolvem um povo ou outro. Temos que nos desprender de temáticas específicas para que a luta seja global”, frisou.

O desafio é endereçar tantas questões relevantes trazidas pelos indígenas em apenas dois minutos! Esse é o tempo que, segundo Mairena, é concedido aos observadores no final das sessões plenárias de negociação na UNFCCC. “Precisamos ser muito efetivos e coordenados para enviarmos a nossa mensagem”, relatou. E isso tem tudo a ver com a organização deste fórum onde as questões indígenas são lapidadas. “Hoje temos três presidentes no Cáucus e dois pontos focais, que fazem o vínculo com o secretariado. Toda a comunicação se faz através dessas duas pessoas, para agilizar o fluxo de informação e de coordenação. É um trabalho muito intenso, constante, durante todos os dias das COPs. Além disso, existem comitês de coordenação global, constituídos em Varsóvia, na COP 19, para os trabalhos ao longo do ano”, explicou Mairena.

Juan Carlos Jintiach afirma que desde o Acordo de Paris os povos indígenas foram mencionados em mais de 60 decisões na UNFCCC.

Um dos co-presidentes é justamente Juan Carlos Jintiach, assessor técnico da COICA, que dividiu com Mairena este painel da capacitação. Além de reforçar o histórico, os caminhos e as estruturas da UNFCCC para incidência indígena, Jintiach fez um relato sobre o verdadeiro jogo de cintura que é entender e transitar pelas instâncias da UNFCCC com a pauta indígena. “A COP é um ambiente amplo. Temos que conhecer as condições que nós, como observadores, temos, porque os atores principais são os governos. Mas há companheiros indígenas que são ou já foram parte dos governos, são negociadores, então temos que saber com quem falar, enxergar os órgãos, como estão constituídos e o que significam”, apontou Jintiach.

Segundo ele, desde o Acordo de Paris existem referências de mais de 60 decisões ou menções aos povos indígenas na UNFCCC. Uma das mais importantes é a que culminou com a criação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, e com o advento do grupo de trabalho facilitador para sua implementação, em 2018, que garante de modo inovador representação igualitária entre Estados e povos indígenas indicados pelas sete regiões multiculturais do planeta de forma autônoma. “A plataforma é uma conquista oficial, não é um sitio de internet, é um espaço oficial e previsto dentro da Convenção do Clima”, afirmou Jintiach.

Francisca arara/OPIAC, Almerinda Tariano/FOIRN, Nara Baré/COIAB, Marta Tipuicy Manoki/Rede Juruena, Edel Nazaré/CNS e Patricia Zuppi/RCA junto com os demais representantes indígenas de todas as sub-regiões socioculturais e negociadores das Partes comemorando a aprovação da criação do “Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas” (FWG-LCIPP, em sua sigla em inglês), órgão pioneiro na UNFCCC, composto paritariamente por representantes de países e povos indígenas, para implementação da Plataforma.

A plataforma nasceu em meio a esse processo de negociação e articulação do movimento indígena internacional. “Ela foi criada a partir da COP de Paris e precisa se fortalecer para que seu plano de ação a cada três anos possa ser revisado e para buscar financiamento para sua implementação. Não se pode ter uma plataforma de diálogo global sem ter plataformas nacionais”, opinou Mairena, que citou Peru, Costa Rica e Bolívia como exemplos de países em que iniciativas nacionais estão prosperando. Este é um espaço em que, por tudo isso, participação indígena é mais que bem-vinda. “É muito importante que qualquer delegado que chegue à COP26 participe das nossas reuniões oficiais. Vamos fazer um Cáucus interno e vamos fazer coletivamente. A reunião da plataforma tem que ter participação”, avisou Jintiach. Para os povos indígenas do Brasil, tem sido um desafio acompanhar mais de perto essa agenda desde a regional da América Latina e Caribe.

Sineia do Vale/CIR: “A crise climática tem a ver com os direitos, a demarcação das terras indígenas, e isso tudo precisa estar conectado.”

“Saber de todo esse histórico é enriquecedor, porque compreendemos como um povo indígena pode fazer incidência nesses espaços. Estamos organizados, estamos dentro da UNFCCC e é um caminho não muito fácil, é desafiador, principalmente quando se trata da questão da língua”, avaliou Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), mediadora da sessão. 

Para ela, é preciso entender mais sobre a política climática para fazer um contundente contraponto à versão que os governos levam para as COPs sobre seus compromissos com os povos indígenas e com o meio ambiente. “A crise climática tem a ver com os direitos, a demarcação das terras indígenas, e isso tudo precisa estar conectado. Há um retrocesso na questão do direito e pode nos tirar dessa condição de barreira contra o desmatamento”, alertou Sineia.

Expor o cotidiano dessas ameaças pode nutrir espaços como a plataforma de legitimidade, como lembrou Juarez Paimy, do povo Rikbaktsa, e que representou a Rede Juruena Vivo na capacitação. “O agronegócio cresceu de forma incontrolável em volta dos nossos territórios. O governo vai dizer que está tudo às mil maravilhas. Precisamos defender o que resta dos rios, das florestas”, disse Paimy. “Somos nós os maiores protetores da floresta, do meio ambiente. Temos que incentivar diretamente os saberes tradicionais nessa política de mudanças climáticas”, motivou-se Lucio Xavante, da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt).

O curso “Lideranças indígenas rumo à COP26” prevê sete encontros virtuais até as vésperas da Conferência do Clima, a ser realizada na cidade escocesa de Glasgow, entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021. É promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Uma Gota no Oceano e conta com apoio de Fastenopfer, da Fundação Rainforest da Noruega e da Fundação Ford.

Rede de Cooperação Amazônica

A RCA tem como missão promover a cooperação e troca de conhecimentos, saberes, experiências e capacidades entre as organizações indígenas e indigenistas que a compõem, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade e bem estar dos povos indígenas no Brasil.